quarta-feira, 8 de junho de 2016

O “Império do Caos” e as Razões do Golpe de Estado no Brasil

| Texto Ilton Freitas


No início dos anos noventa do século passado se dissolvia a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), e findava o mundo bi polarizado militarmente com os Estados Unidos desde o fim da II Guerra Mundial (1939-1945). A resultante foi um mundo unipolar sob a regência sem rival militar e econômica do império anglo-americano. No novo cenário o império impulsionou a guerra contra o Iraque (1991) para rapinar sua principal riqueza natural, o petróleo. Guerra levada a cabo sob o falso pretexto de que o regime de Sadam Hussein escondia armas de destruição em massa. Além da guerra, o Iraque foi submetido a um embargo comercial de 1990 a 2003, que vitimaram centenas de milhares de iraquianos, a grande maioria crianças. A escalada bélica da “Nova Ordem Mundial” anunciada pelo presidente George W Bush (1989-1993), foi acompanhada pela contrarrevolução econômica neoliberal na América Latina. 






As premissas do neoliberalismo expressas no Consenso de Washington¹ defendia a liberação do comércio, a livre flutuação dos mercados de câmbio, as privatizações das empresas estatais, as demissões dos servidores públicos, dentre outras medidas. O objetivo era favorecer o setor financeiro/rentista em detrimento dos setores produtivos e dos estratos mais empobrecidos dos países latino-americanos. Os governos neoliberais como sabemos devastaram as economias dos países em desenvolvimento e atacaram duramente os salários, as pensões e as aposentadorias dos trabalhadores latino-americanos. Desse modo os governos de FHC (1994-2002), Fujimori no Peru (1995-2000), Menem na Argentina (1989-1999) e outros entreguistas na região, garantiram ao capital financeiro anglo-americano a maior parte do butim sobre as riquezas de nossas nações. 

Contudo, ao adentrar no novo milênio os interesses imperiais e a agenda neoliberal foram confrontados a partir da enorme resistência dos povos latino-americanos, da renitente crise econômica mundial e pela emergência de novos atores na cena internacional; a China e seu dinamismo econômico, e a reafirmação da Rússia como potência regional na Eurásia, seus enormes recursos naturais como o gás e o petróleo, mais o seu poderio bélico. À par de uma nova configuração internacional tendente à multipolaridade emergiram na América Latina os governos progressistas de Hugo Chavez na Venezuela (1999), Lula no Brasil (2002), Néstor Kirchner na Argentina (2003) Rafael Correa no Equador (2006), Tabaré Vazquez no Uruguai (2005), Evo Morales na Bolivia (2006), Michele Bachelet no Chile (2006) e Fernando Lugo no Paraguai (2008). Tendência semelhante se expressaria em alguns países da América Central como Nicarágua e El Salvador.

Entrementes, a configuração multipolar do início do novo milênio provocou a contraofensiva imperial. Como sempre a reação do capital financeiro e do complexo industrial bélico ao longo do mandato do presidente Bush Fº (2001-2009), foi o de promover uma nova escalada militar doutrinada como “Guerra ao Terror”, após as explosões das “Torres Gêmeas”, no 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque. Desse modo os “neoconservadores republicanos” sob a liderança de Dick Cheney, vice de Bush, executaram a doutrina da “Guerra sem Fim” para o século XXI, e ato contínuo deram início a invasão do Afeganistão (2001) e da segunda guerra contra o Iraque (2003). Não esqueçamos que na América Latina, no último ano do governo democrata de B. Clinton, em 2000, houve uma tentativa de golpe de estado contra o presidente Chavez, na Venezuela. Houve uma clara e manifesta tentativa de abortar a ascensão do presidente Chavez, através de um golpe midiático e empresarial. Era fundamental eliminar na raiz um projeto que defendia que as riquezas do petróleo deveriam ser repartidas com a população. O golpe só não se efetivou por conta de uma enorme mobilização popular aliançada com setores nacionalistas do exército venezuelano. O império sofria uma derrota, mas jamais recuou do objetivo de submeter aos seus interesses os governos da região.

No continente latino-americano há uma enorme reserva de recursos naturais (água, metais nobres e preciosos, petróleo, gás, biodiversidade, etc.), cobiçados há muito pelas potências coloniais dos séculos passados, e contemporaneamente pelo império anglo-americano associado com às servis elites econômicas da região. A revolução bolivariana na Venezuela deu início a uma virada progressista na América Latina, ensejando a chegada ao poder pela via das eleições de lideranças populares e partidos de esquerda nos principais países ao sul do continente, Brasil e Argentina. Contudo, importantes analistas de geopolítica² alertaram que, se por um lado, a onda progressista se devia ao enfraquecimento relativo da dominação imperial - por conta do surgimento de competidores de peso como a China -, por outro, assinalavam que uma potência imperial decadente seria uma perigosa ameaça à democracia, ao desenvolvimento soberano e a integração latino-americana!

Desde a explosão das “Torres Gêmeas” em 2001, houve uma sensível mudança na diplomacia norte-americana. Um viés essencialmente militarista deslocava as correntes diplomáticas tradicionais para um plano secundário. Tal mudança tornou possível a execução das diretrizes dos neoconservadores republicanos alinhavadas no documento; “A América e o Século XXI”³ . O documento foi redigido antes das explosões das “Torres”. Sendo assim os atentados deram o pretexto necessário para a concretização das diretrizes dos neocons. Em síntese o que os neoconservadores defenderam e executaram foi uma nova escalada bélica sem precedentes no Afeganistão e Iraque, seguida da “reconstrução” da infraestrutura desses países por empresas de capital ocidental. Outra diretriz importante defendia a desestabilização de governos não alinhados ao Ocidente nos países limítrofes, ou, aliados regionais da Rússia de Putin. O objetivo claro consistia em “cercar” os russos através de bases militares da OTAN. Ademais, no extremo Oriente o objetivo estratégico mais do que evidente era e é a contenção do polo mais dinâmico do capitalismo, a China.

A eleição do presidente democrata Barack Obama em 2008, não arredou em um milímetro as diretrizes dos neoconservadores. Cidadãos de boa vontade em todas as latitudes saudaram a eleição do primeiro afrodescendente para a presidência dos Estados Unidos. Mas o desapontamento e a decepção com o Obama foram rápidos. Sob os dois mandatos de Obama o gasto com a fabricação de armas nucleares cresceu exponencialmente4, contrariando discurso de campanha em sentido contrário. A vergonhosa prisão de Guantánamo (base militar norte-americana em solo cubano) não foi fechada e denúncias de tratamento desumano e torturas na prisão de Abu Ghraib (Iraque) vieram à tona através de imagens aviltantes pela internet. Sob a administração Obama ocorreram os bombardeios da OTAN sob a Líbia (2011) e a participação da embaixada norte-americana no armamento dos grupos fundamentalistas de oposição ao presidente Kadafi, o patrocínio ao golpe nazifascista na Ucrânia (2012), o golpe militar no Egito (2013) após a “primavera árabe”, o assassinato indiscriminado de cidadãos (“terroristas”) em países árabes e muçulmanos operados por drones e aviões não rastreáveis por radar (stealph), o apoio explícito e velado aos grupos terroristas que tentam levar o caos a Síria  e ao regime do presidente Assad. Por fim, o recrudescimento bélico e desestabilizador promovido pelo império não poderia deixar de lado a América Latina e seus estados soberanos, os governos progressistas e, particularmente, o Brasil. 

Sob os governos petistas o Brasil ousou em desafiar em certa medida, os interesses geoestratégicos e políticos da “Nova Ordem Mundial”. Senão, vejamos. Em 2005 o presidente Lula em parceria com o presidente venezuelano Hugo Chavez, derrotaram o principal projeto econômico do império para a região, isto é, o tratado de livre comércio e de circulação de capitais, a ALCA5 . Ademais, à diferença do entreguista governo FHC, Lula não permitiu que os norte-americanos instalassem uma base militar em território brasileiro, na cidade marítima de Alcântara, no Maranhão. Outras heresias foram cometidas como a democratização do crédito para a população de baixa renda, a recuperação do valor de compra do salário mínimo, o reajuste das pensões e aposentadorias, o incentivo à produção de conteúdo nacional e a aposta na cadeia produtiva do petróleo. O Brasil ensaiou alguns passos de nação soberana como o reequipamento das forças armadas através do orçamento público, e concebeu o projeto do submarino nuclear, extraordinariamente necessário após a descoberta do Pré-Sal.  Ousou no lançamento de satélite em parceria com a China e o desenvolvimento de protótipo com tecnologia nacional para estacionar na órbita baixa de nosso território. A partir de condições econômicas internacionais favoráveis para a nossa balança comercial, foram criadas as condições para o resgate da enorme dívida social do País. Programas como o bolsa-família minimizaram a pobreza e a miséria que atingiam brutalmente a infância. O déficit habitacional de mais de seis milhões de moradias começou a ser enfrentado como programa Minha Casa Minha Vida. As políticas proativas de cotas tornaram possível o ingresso na universidade pública de setores antes excluídos. 

A grande obra de inclusão social dos governos petistas foi seguida por uma presença internacional soberana. O Brasil com os governos Lula e Dilma recuperaram a importância do Mercosul. A ação de fortalecimento do Mercosul ampliou a tarifa externa comum de importações dos países membros, o que deu aos países do bloco um maior poder de barganha junto a outros blocos econômicos, como, por exemplo, a União Europeia. Por conta de uma visão independente e soberana de política internacional o Brasil participou da construção dos BRICS, aportando recursos para a construção de um fundo para o financiamento da infraestrutura e de um banco de desenvolvimento. Portanto, as ações dos governos Lula e Dilma no front internacional geraram contradições e desafiaram os interesses geoestratégicos do capital financeiro e de seus prepostos!

O golpe de estado no Brasil que afastou a presidente Dilma, a partir de uma conspiração parlamentar, jurídica e midiática pode ser compreendido a partir do conceito de “Guerra Híbrida”6 . Os estrategistas do “Império do Caos”7  atualizam permanentemente os conceitos e os meios para impor aos povos os inconfessáveis interesses da elite financeira internacional. A Guerra Híbrida consiste na combinação de ações de massa de descontentamento popular (“revoluções coloridas”), mais as ações desestabilizadoras de governos por via da mídia-empresarial, de lockouts empresariais, do uso de parte do judiciário corrompido, e, no limite, no emprego do uso de forças militares e paramilitares locais para fins de guerra civil, ou, da invasão externa. O objetivo geral da “Guerra Híbrida” é provocar uma mudança de regime (regime change) em países relevantes em recursos naturais, removendo por meios “democráticos”, ou, pela força os governos não alinhados e insubmissos.

Para a consecução dos interesses imperiais na América Latina é fundamental desabilitar as alternativas de governos progressistas no Brasil. Posto que sob a ótica imperial é inadmissível a emergência de uma potência regional independente, próspera e capaz de se tornar uma alternativa a dominação e a espoliação do capital financeiro e das empresas transnacionais. Para isso contam com a subserviência das elites econômicas locais, e dos partidos que as representam. O “governo Temer” é apenas a versão lumpen dos interesses subordinados dos empresários rentistas locais. A questão de fundo que será resolvida pela luta de classes e de libertação nacional é se o Brasil adentrará o século XXI como uma nação soberana, ou, prevalecerá o projeto tucano de fazer de nosso País um vassalo da elite financeira global!

------------------------------

[1]Em 1989 representantes do sistema financeiro internacional, do FMI e do FED reunidos em Washington D.C, prescreveram um conjunto de medidas neoliberais para o “enfrentamento” da crise do capitalismo. Propuseram a liberação do comércio, as privatizações e medidas duras para a diminuição dos déficits fiscais. (N.A.)
[2]Refiro-me ao politólogo argentino Atilio Boron . Trata-se de um dos principais analistas da geopolítica do império e autor da obra “America Latina em la Geopolitica del Imperialismo”, UNAM/Mex, 2014.
[3]Vide documentário “O Novo Século Americano”, https://www.youtube.com/watch?v=rfZRMI-VK_4
[4]Estimam-se gastos na ordem de U$ 4 trilhões. (N.A.)
[5]Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foi concebida no primeiro mandato de B. Clinton, em 1994. (N.A.)
[6]Vide ensaio de Pepe Escobar em http://br.sputniknews.com/brasil/20160329/3956498/brasil-russia-ataque-guerra-hibrida.html
[7]O termo “Império do Caos” se origina da obra de Pepe Escobar, ainda sem tradução para o português, Empire of Chaos, Hardcover, 2014. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário