segunda-feira, 27 de junho de 2016

Guardiania¹ versus Democracia: Oligarquia versus Governo Eleito no Brasil

| Texto Ilton Freitas


Remonta aos antigos gregos as origens do debate político e filosófico que colocam em perspectivas distintas os defensores do governo dos guardiães (aristocracia), em contraposição ao governo democrático (povo). Os governos que resultam da guardiania e da democracia constituem formas distintas e antagônicas nas suas fundamentações. O grande filósofo da antiguidade, Aristóteles (384 a.C./322 a.C.), em sua obra “Ética a Nicômaco (350 a.C.)”, sistematizou uma famosa descrição sobre os tipos de governo e suas respectivas formas corrompidas. A monarquia poderia resultar em tirania, a república aristocrática resultaria numa oligarquia (poder de poucos), e, finalmente, a democracia degeneraria em anarquia (ausência de autoridade).  Seguindo Aristóteles poderíamos agrupar a monarquia e a aristocracia como variantes do poder não democrático, porquanto a democracia e suas instituições constituiriam o poder do demos (povo). Registre-se que para Aristóteles a pior forma era a democracia, pois sua corruptela – a anarquia – ameaçaria a sobrevivência da polis. 







Contudo, foi o filósofo Platão (427 a.C. a 384), o pensador clássico que em sua obra, “A República” (380 a.C.), desenvolveu a ideia seminal da guardiania. Pois para Platão e sua idealizada República seriam os reis filósofos os guardiães do bom governo, das leis  e da virtude. O governo na república de Platão era atributo exclusivo do poder aristocrático, ao qual os súditos deveriam se submeter incondicionalmente. O que gostaria de remarcar a partir dessa breve invocação a dois pensadores clássicos, é que o confronto entre as variantes do pensamento oligárquico e democrático, deitam raízes históricas na tradição ocidental. 

Ao analisarmos a história do pensamento político do Ocidente se observa que as correntes oligárquicas predominaram na maior parte do tempo. A rigor o ideário democrático só recebeu um considerável impulso com as revoluções liberais do século XVIII, mormente a partir da revolução norte-americana (1776), e da revolução francesa (1789). Com o advento do sufrágio universal no século XIX, em países como a França e a Inglaterra, as classes populares e seus partidos fizeram-se representar nos parlamentos, outrora reservados aos notáveis, isto é, às classes proprietárias e seus representantes. À destarte da conquista de direitos civis e políticos a sociedade europeia mal adentrando no século XX, deparou-se com uma conflagração militar entre suas potencias, sedentas por mercados e colônias. A eclosão e as consequências da I Guerra Mundial (1914-1919) como bem sabemos não reafirmaram as conquistas democráticas do século anterior. Pelo contrário, a resultante produziu um surto autoritário de grandes proporções que sacudiu o velho continente. Na Itália o surto se expressou através do fascismo de Mussolini. A simbólica marcha sobre Roma, em 1922, onde a “ação triunfou sobre a filosofia” consagrou a viragem autoritária! Mais adiante, nos anos 30, foi a vez da Alemanha com o advento da ditadura nazi-hitlerista. Nesse contexto as correntes democráticas de pensamento eclipsaram e a “revanche” oligárquica revelou sua mais bestial faceta, isto é, o Estado policial apoiado no terror como método, no autoritarismo, na partidarização do judiciário e das promotorias, no militarismo e no aviltamento da dignidade humana. 

Os fenômenos autoritários do século XX, que tiveram seu ápice com o nazismo na Alemanha, e que inspiraram ditaduras como a de Salazar e Franco, em Portugal e Espanha, não se limitaram ao velho continente. No Brasil, a referência do Estado Novo (1937-1945) de Vargas era o regime salazarista. Entrementes, o denominador comum dos regimes autoritários – incluso a ditadura militar no Brasil (1964-1985) - é a ideia de que a democracia é incapaz de gerar elites responsáveis e capazes de governar!  O nazismo adicionou a essa premissa autoritária a falsa ciência da eugenia, posto que para os nazis a democracia era incapaz de estabelecer filtros de raça e de sangue entre os representantes!

As expressões políticas de extrema direita levaram e levam ao extremo o pensamento oligárquico. Contudo, é evidente que para um bom número de pensadores conservadores o extremismo oligárquico é injustificável à luz do direito positivo, sua constitucionalidade e garantias. Tampouco para uma certa tradição do liberalismo político é justificável um regime político que se apoie na violência estatal, e na intolerância contra adversários e opositores. No entanto, a vitalidade do pensamento oligárquico e de sua ferramenta teórico-normativa - a guardiania - pode nos ser apresentados sob uma nova embalagem. Recordemos que a ideia-força da guardiania se apoia na premissa de que indivíduos, ou grupos de indivíduos “excepcionais”, “acima do bem e do mal”, devem conduzir os homens e suas instituições corrompidas e desmoralizadas. 

O ativismo institucional de setores do judiciário, do ministério público e da polícia federal do Brasil, por ocasião da dita “Operação Lava a jato”, constitui um caso notório em que representantes de instituições do Estado se travestiram em guardiães da moral e dos bons costumes. O custo dessa operação deitou por terra princípios elementares do estado de direito democrático como o habeas corpus, o direito amplo de defesa e demais garantias contra atos arbitrários como, por exemplo, as chamadas conduções coercitivas de cidadãos indiciados, que não ofereciam risco algum às investigações, ou, de obstrução à justiça. A rigor o juízo que conduz a “Lava a Jato” produz uma jurisprudência temerosa para a cultura jurídica do País, posto que a aplicação do recurso da delação premiada foi posta à prova de modo imprudente, espetaculosa e irresponsável. Contudo, os abusos e os flagrantes atropelos ao estado de direito são matérias que em boa medida estão sendo debatidas e denunciadas por juristas sérios e constitucionalistas do País, e de alhures. Um dos mais notórios penalistas da América Latina, o juiz argentino Eugenio Raul Zaffaronni, declarou que a comparação entre a operação “Lava a Jato” e a operação “Mãos Limpas” (Itália) era inapropriada posto que a “Mãos Limpas” não visava a um golpe de estado². 

Por certo que a “Lava a Jato” adquiriu notoriedade por conta do conluio de atores institucionais e da mídia-empresa. É mais do que evidente que trata-se de uma operação muito bem planejada por “forças ocultas”, que desenharam uma divisão de trabalho entre setores do judiciário e da mídia. Por se tratar de uma operação planejada tudo indica que há vários objetivos. Um deles foi o afastamento da presidente Dilma através do golpe parlamentar de 17 de abril. Contudo, para efeitos no senso comum a mensagem ideológica batida e rebatida pela mídia sugere que a politica partidária se tornou uma atividade criminosa e de que as lideranças politicas do País são todas corruptas (exceção os políticos do PSDB), porquanto se locupletaram com a atividade politica em detrimento do interesse publico. Sendo assim - como consequência - se criam as condições politicas e ideológicas para a produção de uma saída da crise que passe “por fora” do sistema tradicional dos partidos.  Ou seja, se abrem as possibilidades para que “homens excepcionais”, verdadeiros “guardiães” dos costumes e da moralidade pública ocupem o espaço da politica, posto que o sistema tradicional “caiu apodrecido”! 

Por fim, cumpre dizer que num País como o Brasil em que a cultura democrática engatinha, as alternativas políticas que servem às oligarquias nativas e estrangeiras estarão a espreita para fazer retroceder o estado democrático de direito, as conquistas sociais e os direitos da maioria da população. Os poderes fáticos (dentre eles a mídia) e incrustados nas instituições do Estado (partes do judiciário) nada mais representam do que velhas e novas oligarquias. As facetas do poder oligárquico foram muitas ao longo da história. As suas expressões mais brutais como as ditaduras e os regimes totalitários não foram suficientemente sancionados pelos estados democráticos. Os “ovos de serpente” nunca deixaram de ser chocados. Num passado nem tão remoto assim os “guardiães” da moral e dos bons costumes se travestiram de chefes políticos demagogos (führer, duce, generais, etc.). Considerando o indesejado ativismo institucional de setores do judiciário e de alguns promotores de justiça partidarizados,  parece que há novos candidatos a coveiros da democracia. 

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[1] O conceito de Guardiania é desenvolvido pelo cientista politico norte-americano, Robert Dahl na obra “A democracia e seus Críticos”, Editora Martins Fontes, 2012.
[2]Vide em http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Principios-Fundamentais/-A-diferenca-e-que-a-operacao-Maos-Limpas-nao-visava-um-golpe-de-Estado-/40/33407

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