sexta-feira, 22 de abril de 2016

A Precária Cultura Democrática e a Re-Oligarquização do Poder no Brasil

| Texto Ilton Freitas


A mais recente interrupção da democracia no Brasil se consumou através de um golpe parlamentar, na repugnante sessão do Congresso Nacional de 17/04/2016. O golpe de “um bando de deputados corruptos que deseja cassar o mandato de uma presidente honesta”, segundo o insuspeito porta-voz da elite financeira de Wall Street, o The New York Times, em sua edição de 14/04/2016! Lembremos que o primeiro período democrático em nossa história iniciou apenas em 1945, e foi interrompido com o golpe civil-militar de 1964, que depôs o presidente João Goulart. O período atual teve início com a eleição do presidente Collor, em 1989, e com a reeleição da presidenta Dilma em 2014. A aprovação da admissibilidade do processo de impeachment contra a presidente Dilma – sem crime de responsabilidade - indica, portanto, que estamos ante a mais uma efetiva interrupção de um mandato conferido pelas urnas, isto é, pela soberania popular! Sendo assim após os episódios recentes e vexatórios da aprovação do impeachment de Dilma pela Câmara, assumimos que nossa democracia continua distante de um desejado padrão de maturidade. Isso se deve – em parte - a ausência de uma cultura democrática hegemônica no País. Se não há hegemonia de uma cultura democrática, logo o que verificamos é a predominância de um imaginário não democrático.









Vejamos como essa afirmação pode apoiar-se em evidencias. Desde meados dos anos 90, o instituto Latinobarômetro, com sede em Santiago, capital do Chile, faz pesquisas sobre o estado (aprovação/desaprovação) da democracia em todos os países da América Latina. Trata-se de uma pesquisa abrangente que envolve a avaliação das instituições democráticas como os parlamentos, os partidos, os governos, o judiciário, etc. Entrementes, chama a atenção no extenso questionário uma pergunta sobre o apoio à democracia. Pela metodologia da pesquisa para avaliar o regime democrático, foram criadas as seguintes categorias: os apoiadores, os indiferentes, os autoritários e os que “não tem opinião”. De 1995 a 2015, foram realizadas dezoito edições da pesquisa. No caso do Brasil, em apenas três edições os apoiadores da democracia perfizeram um percentual superior a 50% do total de entrevistados. E em duas, 50%, contra 50% dos “não democráticos”. Nas demais treze edições a somatória dos indiferentes, dos autoritários e dos que “não tem opinião” foi superior ao dos apoiadores da democracia. Portanto, de acordo com a pesquisa, infere-se que na média a maioria dos brasileiros – ao longo da série histórica – demonstraram que são indiferentes, autoritários e que não tem opinião formada sobre se apoiam, ou, não, a democracia.

Considerando que a amostragem revelada na série histórica das pesquisas do Instituto Latinobarômetro esteja bem fundamentada - em termos conceituais e metodológicos -, a pergunta que se impõe é a seguinte; por que em nosso País não há uma sólida maioria de cidadãos apoiadores da democracia? Por que os indiferentes e os autoritários são – em média - majoritários ante os democratas? As respostas a essas indagações não são simples. Há um conjunto de fatores que inter-relacionados auxiliam a compreender a mentalidade antidemocrática, ou, indiferente à democracia da maioria dos brasileiros.  Alguns dos nexos explicativos podem ser: 1) a renitente desigualdade socioeconômica e suas implicações no imaginário da população, tão bem explicada por Jesse de Souza¹, 2) a não universalização dos direitos civis e do “Estado Legal”, abordada num clássico estudo sobre a redemocratização da América Latina, a partir dos anos 80, por Guillermo O’Donnel² , e 3) a ausência de uma esfera pública discursiva democrática (aqui reside minha hipótese principal), tema recorrente de cientistas políticos importantes, como, dentre outros,  o prof. Leonardo Avritzer³, da UFMG. Vamos por partes.

Em que pese a diminuição da desigualdade social no Brasil nos últimos anos, demonstrados por índices reconhecidos universalmente como o de GINI e o IDH da ONU, as diferenças entre as rendas dos mais ricos e a dos mais pobres continuam alarmantes. Sobretudo na comparação com a maioria dos países da OCDE. Nos países escandinavos a diferença entre o menor salário e o maior situa-se na razão de um para dez, ou, quinze no máximo. Em nosso País as discrepâncias entre o menor salário e o maior são oceânicas, podendo em alguns casos chegar à razão de um para cem, ou, mais. O caldo de cultura que se forma a partir de uma sociedade tão desigual não pode ser democrático. Por uma razão. A naturalização da desigualdade de renda pelo tecido social promove sérias interdições à mobilidade social. Sociedades com pouca, ou, precária mobilidade tolera injustiças e iniquidades, que só podem ser justificadas por meio de operações ideológicas do tipo, “sempre foi assim”!  Ademais aqueles que se situam no topo da pirâmide de renda tendem a considerar com antipatia as políticas públicas que combatem a desigualdade social. No limite sentem-se ameaçados e passam a criminalizar governos e partidos, que, segundo essa perspectiva não respeitam a meritocracia. Portanto, a naturalização da desigualdade social constitui uma ideia-força potente que contamina e impede o desenvolvimento de uma cultura democrática, posto que afronta um dos valores mais caros à democracia, qual seja, o valor da igualdade!

Outro fator causal a impedir consolidação de uma cultura democrática é a precariedade do processo de universalização dos direitos civis (reunião, opinião, o devido processo legal, habeas corpus, etc.) e, por via reflexa, das limitações de acesso aos serviços jurisdicionais do estado. Há autores que comparam a sequência de direitos conquistados nos países europeus, a partir do século XVIII, com os países latino-americanos, após suas lutas de independência no século XIX. Dessa forma na Europa as sociedades conquistaram primeiramente os direitos civis, depois os políticos e, por fim, os sociais4. Na América Latina a sequência se demonstrou invertida; primeiro algumas poucas concessões sociais, depois os direitos políticos, e mais recente - e inconclusivamente - os direitos civis. A sequência descrita faz sentido, pois basta verificar os obstáculos e dificuldades das classes populares em acessar o sistema judiciário em boa parte dos países latino-americanos. O politólogo argentino, Guillermo O’Donnel (1936-2011), ao estudar os processos de redemocratização da América Latina, problematizou que dentre os desafios das novas democracias na região, um deles consistia em universalizar direitos civis em contextos de enormes desigualdades sociais. Para exemplificar a precariedade do nosso processo de redemocratização, O’Donell enfatizava que os novos governos eleitos pelo voto popular pouco impulso deram para a generalização dos direitos civis, isto é, o componente legal-formal das democracias. Para ilustrar o autor referia a situação dos direitos humanos na região a partir da condição medieval da maioria dos presídios, e o tratamento dispensado aos apenados. Infelizmente deve-se reconhecer que a situação de nosso sistema penitenciário pouco mudou, e em muitos casos, deteriorou. Desse modo, permanece robusta a explicação de que a insuficiente generalização do componente formal-legal dos direitos civis, contribui, e muito, para a não afirmação de uma corrente de opinião pública democrática majoritária. E nesse contexto de precariedade dos direitos civis e de dificuldades em generalizar princípios elementares de direitos humanos, é que vicejam narrativas preconceituosas de classe contra os menos favorecidos e contra as minorias. Portanto, a incidência dessa narrativa sobre a cultura política transmite anti-valores cívicos, cujo efeito só pode ser nocivo à democracia e sua normatividade.  

Quando reafirmamos que a cultura democrática no Brasil é precária, se torna inevitável abordar a situação de nossa esfera pública (espaço de inter-relações discursivas não estatais e privadas). Como disse no início a degradação da esfera pública é minha principal hipótese. Porquanto entendo ser esse um fenômeno abrangente com alto teor explicativo. O que ocorre em nosso País não é muito diferente do que acontece na maior parte das democracias do ocidente, com diferentes gradações.  Isto é, nossa esfera pública e de alhures estão contaminadas pela mídia-comercial, seus interesses mercantis e seu pensamento único. Tal fenômeno foi abordado pelo grande filósofo alemão, J. Habermass, em sua clássica obra, “Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações Quanto a uma Categoria da Sociedade Burguesa (1984) ”. Habermass demonstra que com o advento das empresas de comunicação de massa, e, em particular a televisão, a esfera pública tradicional foi colonizada pela lógica economicista do mundo privado. Sendo assim as propriedades originais da esfera pública como a universalidade, a liberdade de opinião, a empatia (respeito ao pensamento diverso) e a similitude dos tempos discursivos foram degradadas. O que restou de esfera pública está confinado em espaços limitados de debates sobre temas de interesse público. A teoria de Habermass é a base para boa parte das discussões sobre a esfera pública contemporânea. Seguindo os passos de Habermass, remarcamos que no Brasil, em tempos de discussão de impeachment de uma presidente eleita por 54 milhões de votos, e que não praticou nenhum crime de responsabilidade, nossa esfera pública degradou-se por inteiro. Alguns oporão a internet como salvaguarda. Mas a internet tornou-se muito menos uma potencial esfera pública, e muito mais um território para demarcações políticas. Claro que as redes sociais promovem uma circulação maior de opiniões diversas do que a mídia tradicional. No entanto as redes sociais estão muito longe de substituir a esfera pública original, sobretudo por sua incapacidade de promoção do discurso democrático e suas regras universais de respeito ao contraditório e similitude.  

A degradação da esfera pública no Brasil atingiu seu paroxismo por ocasião das discussões sobre o impeachment de Dilma. O pensamento único da mídia comercial está graficamente expresso no portal Manchetômetro5 . Aliás o Manchetômetro sob a coordenação do cientista político prof. Dr. João Feres Junior, é uma bela iniciativa do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública (LEMEP), do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Recentemente o Manchetômetro tornou público a criação do Índice de Viés (I.V.). O I.V. é medido em relação as valências (positivas/negativas) das notícias relacionadas ao governo federal, a presidente Dilma e ao PT, a partir dos seguintes veículos: tele diário Jornal Nacional e os jornais O Globo, Folha de São Paulo e Estado de São Paulo. A mensuração é semanal. Entre os dias 11/04 e 18/04/16, período que antecedeu e procedeu ao impeachment os resultados do I.V. são estarrecedores, e revelam quase que um linchamento público da presidente Dilma. Vale a pena conferir como tudo isso está demonstrado no índice de viés (I.V.) e sua expressão gráfica.

Uma esfera pública degradada produz efeitos deletérios na capacidade dos cidadãos em apreciar as questões de natureza pública. A esfera pública colonizada pela mídia comercial só interessa aos interesses corporativos. Desde a redemocratização do Brasil a mídia-empresa deixou claro que combateria o Estado (reino do vício), e enalteceria o mercado (reino da virtude). Os monopólios da comunicação no Brasil há muito tempo vêm criminalizando o sistema político. Desse modo exercem o controle sobre governos e legisladores valendo-se dos escândalos políticos como arma mortífera, capaz de destruir e enlamear qualquer reputação. A participação da mídia nos episódios recentes que culminaram com o impeachment da presidente Dilma, revela que mais do que degradada nossa esfera pública foi liquidada pelo pensamento único. Infelizmente essa tragédia há muito anunciada não foi devidamente combatida pelos governos petistas, que não pautaram as demandas dos grupos de pressão da sociedade civil, defensores da democratização dos meios de comunicação de massa.

Portanto, a combinação da renitente desigualdade social, a não universalização dos direitos civis e a esfera pública degradada, ou, liquidada conformam um imaginário predominantemente não democrático na sociedade brasileira. A recepção entusiasmada do impeachment de Dilma por uma parte considerável da população, confirma o quão distante estamos em admitir que a democracia é o único modo de resolvermos nossos contenciosos políticos. Uma formação social em que predomina uma cultura política antidemocrática, será presa fácil das corporações e das soluções autoritárias, elitistas, (proto) fascistas e antipopulares!  

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[1] Refiro-me ao livro “A Tolice da Inteligência Brasileira: Ou Como o País se Deixa Manobrar Pela Elite”, Editora Leya, 2015.
[2] O’Donnell, Guillermo. "Poliarquias e a (in) efetividade da lei na América Latina." Novos Estudos CEBRAP 51 (1998): 37-61.
[3] Avritzer, Leonardo. "Cultura política, atores sociais e democratização: uma crítica às teorias da transição para a democracia." Revista Brasileira de Ciências Sociais 10.28 (1995).
[4]Diga-se de passagem, ameaçados na atualidade pelas políticas de austeridade do Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia. N.A.
[5] http://www.manchetometro.com.br/



 
  

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