Introdução
A relação
entre os executivos e os legislativos na América Latina vem merecendo uma
atenção destacada da Ciência Política contemporânea. Com o advento da redemocratização
da região no final dos anos 70, do século passado, a transição dos regimes de
exceção para os democráticos vem requerendo dos politólogos análises rigorosas
e com razoável capacidade preditiva. À priori, a moldura
institucional democrática deveria ou poderia equilibrar os poderes executivos e
legislativos, pois nos regimes ditatoriais o executivo acumulou poderes
legislativos hipertrofiando suas atribuições. O caso brasileiro se reveste de
particular interesse por conta da combinação de presidencialismo,
multipartidarismo proporcional e voto personalizado em “listas abertas”.
Desse modo o Brasil apresenta características singulares por conta de seu
“presidencialismo de coalizão”, conforme definição consagrada de Sérgio
Abranches (ABRANCHES, 1988). Sendo assim o objetivo desse artigo é descrever as
características mais gerais dos parlamentos latino-americanos e suas relações
com os executivos, e verificar brevemente em que condições essas relações se
dão no Brasil, em particular na atual conjuntura de início do segundo mandato
da presidente Dilma Roussef.
Características
gerais das relações executivo/legislativo na AL
O ponto de partida para a compreensão das relações dos regimes
presidencialistas preponderantes na América Latina, com as respectivas
legislaturas é a pressuposição de que os parlamentos em relação aos executivos
assumem três formas de comportamento. Podem ser originativos, pró-ativos e
reativos. Os originativos via-de-regra caracterizam as experiências parlamentaristas
européias, pois nessa tipologia os parlamentos são ao mesmo tempo executivos e
legislativos. Os pró-ativos são aqueles que tomam a iniciativa de fazer
tramitar toda a produção legislativa, é o caso do congresso norte-americano. E
os reativos, mais condizentes com a realidade latino-americana, são aqueles
parlamentos que emendam ou vetam as propostas do executivo. (MORGENSTERN, 2004)
Ainda que entendamos como correto em assinalar o caráter reativo dos
parlamentos latino-americanos , por um lado, por outro, não nos parece exato
inferir que as assembléias de representantes estejam destituídas de poder. De
acordo com a hipótese de Morgenstern o caráter reativo das legislaturas
latino-americanas está fortemente orientado para a busca da reeleição, para a
estrutura partidária e o sistema eleitoral.
Comparando o perfil das carreiras políticas na legislatura estadunidense com a
latino-americana o autor desenvolve os conceitos de ambição estática e ambição
progressiva, tendo em vista o objetivo geral da reeleição. Nos EUA 90% dos
representantes buscam a reeleição e 90% se reelegem. A característica principal
dos legisladores norte-americanos é o desenvolvimento da ambição estática, isto
é, carreiras políticas que priorizam o legislativo. No caso
latino-americano o que predomina é a ambição progressiva. Os representantes
priorizam as carreiras para além dos legislativos. Morgenstern afirma a
importância da distinção entre padrões estáticos e progressivos para a
compreensão do modelo latino-americano, sem desconsiderar as diferenças entre
os países por conta da grande variedade de perfil dos representantes, os graus
de unidade partidária, de subordinação do legislativo ao executivo e da forma
de composição das assembléias. Os casos do Chile e do México constituem dois
extremos entre as tipologias das carreiras legislativas, respectivamente,
estática num caso, dinâmica no outro. Entre os extremos se situam os casos do
Brasil e Argentina.
No caso brasileiro é incorreto menosprezar a ambição estática dos
representantes. Considerando as dificuldades em reeleger os mandatos no Brasil,
os legisladores trabalham muito na perspectiva dos seus constituintes. Por
outro lado, de modo similar aos seus colegas mexicanos e considerando as incertezas
da renovação dos mandatos, os representantes têm incentivos consideráveis para
a obtenção de posições pós-legislativas. Por conseguinte, os cargos
legislativos em boa medida são utilizados para a alavancagem das carreiras
progressivas ou dinâmicas.
`A guisa de conclusão o trabalho de Morgenstern caracteriza as legislaturas
latino-americanas como “reativas” na relação com os seus respectivos
executivos. Embora haja uma grande variação entre os legislativos da região. Em
alguns casos as iniciativas do executivo são recepcionadas com subserviência e
em outros as casas legislativas se comportam de forma recalcitrante. O autor
afirma que a legislatura brasileira é uma das mais difíceis de categorizar no
que concerne aos perfis de ambição de seus representantes, por conta da
heterogeneidade de seus membros. Muitos representantes no Brasil ambicionam
carreiras estáticas, mas outros tantos se inclinam para posicionamentos
progressivos ou pós-legislativos.
Relações Executivo/Legislativo no Brasil
Na perspectiva de alguns brasilianistas, dentre eles Morgenstern, os padrões de
relacionamento entre executivo e legislativo no Brasil indicam potenciais
problemas institucionais, que no limite podem ameaçar a governabilidade. As
características reativas dos legislativos latino-americanos, o sistema
presidencialista combinado com multipartidarismo (caso brasileiro) e a pouca ou
inexistente unidade partidária poderiam nessa perspectiva comprometer a
maturidade democrática das instituições da região.
Um
breve roteiro para a apreciação das relações executivo/legislativo no Brasil,
sua complexidade e disparidade em relação a modelos de alhures nos são
fornecidos ao tematizarmos alguns aspectos desse relacionamento;
multipartidarismo, representação proporcional e unidade partidária, as
coalescencias das coalizões governamentais , a patronagem e o poder de
agenda.
No caso do multipartidarismo
representado proporcionalmente na composição do legislativo, a experiência
brasileira recente relativiza as afirmações de que dada a fragmentação
partidária estariam comprometidas a conformação de maiorias estáveis no
Congresso Nacional[1]. Há países com um grau de fracionamento
partidário semelhante ao do Brasil como a Dinamarca e a Holanda, e que mesmo
sobrepesando o fato de se tratarem de regimes parlamentaristas apresentam
sólidas maiorias pró-governo nos respectivos legislativos. No caso
brasileiro, a pedra de toque para a compreensão da conformação das maiorias
estáveis no Congresso diz respeito à singularidade de nossa experiência
institucional, que atribui ao chefe do executivo à missão de conformar uma
grande coalizão governamental, com alta taxa de coalescência e com o fito de
assegurar desse modo a maioria legislativa. Esse traço peculiar foi definido
por Sérgio Abranches como denotador do presidencialismo de coalizão. Destarte o
Brasil seria o único País a combinar proporcionalidade, multipartidarismo e o
“presidencialismo imperial”.
Assumimos que o multipartidarismo com
representação proporcional não levam necessariamente à fragmentação nociva da
representação política, e tampouco servem de catalisadores de crises de
paralisia decisória. O período pós-Collor compreendendo os governos de Itamar
Franco até o primeiro mandato da presidente Dilma Roussef (2011 a 2014),
evidenciam que o pluripartidarismo não representou um obstáculo intransponível
para a execução in totum, ou em boa medida dos compromissos
programáticos assumidos por este ou aquele governo.
A limitada unidade partidária a partir
das eventuais dificuldades das lideranças em controlar suas bancadas , por
conta da representação proporcional combinada com voto preferencial
personalizado são atribuídas numa certa literatura como indicadores
consistentes de um contencioso institucional entre o executivo e o legislativo.
Contraposta a esta perspectiva há um número considerável de evidências recentes
que permitem predizer os resultados nas votações mais importantes do Congresso
Nacional, a partir do posicionamento das lideranças partidárias. Desse modo,
fica comprometida a perspectiva de um congresso reativo contaminado por
parlamentares indisciplinados, com pouco ou nenhum vínculo com as organizações
partidárias.
Entrementes as análises que insistem
na perspectiva do esvaziamento das lideranças e da unidade partidária no
congresso nacional, talvez supervalorizem a dimensão distributivista dos
parlamentares. Comunicar, se posicionar e carrear recursos públicos para as
bases regionais é uma condição para a sobrevivência e a reeleição dos
representantes. Mas nas condições em que se realizam o jogo político no Brasil
na atualidade, a esmagadora maioria dos parlamentares, incluído os de oposição,
tem consciência das vantagens institucionais da governabilidade e seus efeitos
esperados e previsíveis nos marcos da disputa política, onde o executivo é peça
chave na arbitragem e na aplicação dos recursos e dos investimentos públicos.
Tornar vantajosa a aprovação das
propostas e projetos do governo no congresso dá ao executivo uma condição
extraordinária para a execução de seu programa. Como isso é feito? Fabiano
Santos indica que para a operação política dessa condição o executivo dispõe de
dois recursos básicos: o poder de agenda e a patronagem (SANTOS, 2003). O
esteio do poder de agenda dos presidentes brasileiros no período
pós-constituinte de 1988, reside na capacidade legislativa constitucional do
executivo e, sobretudo, no monopólio da confecção e execução da peça orçamentária.
A patronagem é a oferta de cargos públicos em troca de apoio parlamentar nas
votações no congresso. A rigor o recurso da patronagem foi largamente utilizado
no período democrático de 1946 a 1964. Se quisermos comparar àquela experiência
com o período atual, o grande diferencial reside no fortalecimento do poder de
agenda dos atuais governantes.
Portanto, qualquer tentativa de
compreender as relações do executivo e do legislativo no Brasil, deve atentar e
levar em conta as singularidades de nosso presidencialismo de coalizão.
Assumimos que o parlamento brasileiro possui características reativas, todavia
o exame rigoroso das condições da política brasileira indica que a fragmentação
partidária não leva a impossibilidade do estabelecimento de maiorias do
legislativo. Para produzir essas maiorias o executivo articula dois recursos
importantes, o poder de agenda e a patronagem. Toda essa engenharia
institucional cede pressão ao distributivismo dos parlamentares, mas não há
motivos suficientes para recepcionarmos sem crítica as visões que estimulam
certo pessimismo sobre o futuro da democracia brasileira.
A
exacerbação do caráter reativo do parlamento brasileiro; a presidência (efêmera?)
de Eduardo Cunha
A história recente do Brasil vem
demonstrando que a democracia e suas instituições políticas não estão isentas
de percalços, e de problemas de coordenação entre os poderes. As jovens
democracias como a brasileira tem um longo caminho a percorrer, e seus
“inimigos íntimos” - como bem assinalou Tzvetvan Todorov[2 - podem adquirir alguma musculatura
em determinadas conjunturas de crise e de polarização política. Na
crise recente entre o Executivo e a Câmara Federal, no início do segundo
mandato da presidente Dilma, importa ressaltar e reconhecer que nenhum ator
relevante insinuou ou defendeu soluções que não passem pelos marcos
institucionais legais e democráticos, pelas instituições de controle do Estado
e pelo poder judiciário.
Todavia, o atual presidente da Camara
Federal, o deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ) - que e’ expressão de uma
representação confessional/conservadora - vem impondo sucessivas derrotas ao
governo no que concerne às matérias legislativas de interesse do Executivo. A
redução do poder de agenda da presidente Dilma vêm provocando importantes problemas
de coordenação governamental. Contudo, não chegou ao ponto de uma paralisia
decisória do Executivo, que é o ponto mais alto de uma crise institucional no
sistema presidencialista.
A rigor a preservação da coalescência da coalizão governante nos marcos de uma crise política embalada por dificuldades econômicas, torna o presidencialismo de coalizão um mecanismo extremamente custoso, e, no caso, arrisco a dizer, quase que beirando a ineficiência. Posto que o PMDB - o maior partido na Câmara e o maior partido da coalizão - tornou-se indisciplinado em relação ao governo, atuando como oposição em projetos e proposições de interesse do Executivo.
Não é nosso desiderato aprofundar a análise da crise política enfrentada pelo governo Dilma. A tarefa não seria simples e foge aos objetivos desse breve ensaio. Ademais porque nesse esforço teríamos que mobilizar outras variáveis relevantes para o estabelecimento das causalidades. Como, por exemplo, o fenômeno do ativismo político institucional de órgãos do poder judiciário no Brasil. Sendo assim nos parece evidente que na atual conjuntura as fontes de instabilidade política, ultrapassam as relações entre o Executivo e o Legislativo. Dessa forma a crise política atual adquire singularidade por conta dos vetores institucionais que a alimentam, ou seja, não é só a oposição e seus aliados no Congresso Nacional.
Agosto, 2015-08-22
Ilton Freitas
Bibliografia
consultada
ABRANCHES,
Sérgio Henrique H. de. Presidencialismo de Coalizão: O dilema institucional
brasileiro. Dados, Rio de Janeiro, Vol. 31, nº 1, 1988, PP. 5-32.
FIGUEIREDO,
Argelina; LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na nova ordem
constitucional. Rio de Janeiro: Ed. FGV; São Paulo: FAPESP. 1999.
MORGENSTERN,
Scott; NACIF, Benito. Legislative politics In Latin America. Cambridge: Cambridge University Press,
2002.
SANTOS,
Fabiano G. M. O poder legislativo no Presidencialismo de coalizão. Belo Horizonte:
Ed. Da UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2003.
[1] Por obvio o que estamos
afirmando contrasta com a conjuntura mais recente em que a Camara Federal sob a
presidencia do Deputado Eduardo Cunha produziu uma tipica crise de coordenacao com
o governo da presidente Dilma Roussef nos primeiros meses de seu segundo
mandato. (N.A.)
[2] Em sua obra “Os Inimigos
Intimos da Democracia” (2012), Todorov faz um alerta sobre a maior ameaca
aos regimes democraticos contemporaneos que sao as estruturas autoritarias
gestadas nas entranhas dos sistemas politicos do ocidente.
Ilton Freitas
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