quarta-feira, 15 de julho de 2015

Cultura Política e Instituições: Qual o Sentido da Causalidade?





  • Os debates acerca de cultura política invariavelmente remarcam a seguinte questão clássica: qual o papel dos valores, das tradições e da cultura para a estabilidade dos regimes, dos governos e suas instituições? Desde os anos sessenta do século passado, os politólogos apreciaram o tema e o problematizaram a partir de distintas perspectivas. Mas antes de inventariar o que disseram autores relevantes , ser-nos-á útil, para fins desse breve ensaio, conceituar a matéria. Penso que José Álvaro Moisés trabalha com abrangência e precisão ao definir: “Cultura política refere-se a uma variedade de atitudes, crenças e valores políticos - como o orgulho nacional, respeito pela lei, participação e interesse por política, tolerância, confiança interpessoal e institucional – que afeta o envolvimento das pessoas com a vida pública.” (José A. Moisés, 2008)

              A conexão da cultura e dos valores com a ação política inspirou a reflexão de muitos autores ao longo da história do pensamento político! Na Idade Moderna, Montesquieu discorreu sobre a idéia da motivação da ação política – usava a metáfora das molas para explicar as idéias como propulsoras da ação. Na perspectiva de Montesquieu, o “Espírito das leis” e os costumes são suportes e educam para a participação cívica! Mais adiante, no século XIX, em “Democracia na América”, Tocqueville ao refletir sobre a “arte da associação”nas ex-colônias britânicas na América do Norte, considerará que “hábitos do coração” favorecem a consciência de “interesses bem compreendidos”, isto é, de objetivos comunitários que estão além dos objetivos individuais.
          Em fins do século XIX e início do século XX, numa outra direção vinculada ao caráter nacional das formações sociais, busca-se estabelecer conexões entre os tipos de sociedade e estado que resultam da combinação de aspectos históricos, culturais, climáticos e geográficos. Um importante autor brasileiro, Oliveira Viana (“Populações Meridionais do Brasil”, 1920) vai fazer uma referencia as nossas raízes ibéricas radicadas num excessivo sentimentalismo e passionalidade, para a partir destas características explicar o desenvolvimento de uma sociedade civil amorfa e passiva diante de um estado interveniente.
               No inicio dos anos 60, a obra “The Civic Culture”, dos norte-americanos Gabriel Almond y Sidney Verba, se tornou um clássico da teoria política, e dos estudos sobre cultura política. Os autores considerarão a cultura como condição necessária para a estabilidade das sociedades democráticas. O modelo teórico proposto pelos autores teve influências de quatro grandes tradições e escolas: 1) Weber e a teoria da ação Social de Parsons, 2) a tradição da psicologia social, 3) a antropologia de viés freudiano, e 4) o iluminismo liberal. De Weber e Parsons os autores recolheram as ideias da ação política como uma orientação, como no caso da ética protestante na formação do capitalismo, e a ênfase nos papéis e funções dos atores. Já da psicologia social os autores recolheram contribuições importantes sobre como os fatores sociais explicariam as condutas e comportamentos mais ou menos intolerantes. Da antropologia consignaram que certas características das ações políticas derivam de estruturas internas das famílias (mais ou menos paternalistas = mais ou menos autoritárias), e do iluminismo liberal a noção de passagem de súdito para cidadão, que equivale a passagem do governo dos homens, para o governos das leis.
           Almond y Verba compararam cinco países – USA, Inglaterra, México, Alemanha e Itália. Segundo a metodologia empregada os países com maior cultura cívica eram a Inglaterra e os USA, ou seja, foram os países que apresentaram uma maior congruência entre cultura e estrutura política. No entanto duas importantes críticas foram feitas ao modelo: 1) seu viés determinista, isto é, a explicação da dinâmica democrática a partir do seu condicionamento prévio de valores, etc.; 2) a distinção das categorias cultura política e estrutura política. Remarcou-se que no modelo estava ausente uma explicação da natureza da relação, e do sentido da causalidade, ou seja, o que determina o quê?
            A maior parte dos críticos argumentaram que a cultura política é apenas um efeito da estrutura política (Barry, 1970), que tenderia a se consolidar com o passar do tempo. Os seguidores de Almond y Verba sustentaram, ao contrário, que o modelo de análise proposto supõe uma efetiva ligação entre as dimensões comportamentais individuais e a dimensão das estruturas do sistema, permitindo explicar a dinâmica da relação cultura-estrutura.
           Em vez de determinação, Almond y Verba teriam adotado o suposto segundo o qual estrutura e cultura influenciam-se mutuamente, ou seja, valores afetam a escolha de instituições (desenho/missão) e o funcionamento destas moldam a cultura política, contribuindo para sua continuidade, ou mudança. Nessa relação caracterizada por uma causalidade cruzada entre as duas dimensões, a estrutura institucional seria causa e efeito da cultura política, e vice-versa. A idéia é que tanto a tradição da cultura política como a que valoriza o formato e o desempenho das instituições, influem sobre como os cidadãos se relacionam com o regime democrático.
          Por volta dos anos 70, um debate promissor sobre as conexões da cultura política com estrutura política foi sugerido por Inglehart. O autor propôs na época uma espécie de acerto de contas com a teoria da escolha racional, posto que em virtude de insuficiências analíticas era necessário ampliar a perspectiva da ciência política, lançando mão da dimensão cultural. Seguindo por esse caminho, Inglehart empreendeu anos mais tarde – num artigo na obra “Cultura Importa”, orgs. Huntington e Harrison (2002) - a tentativa de conciliar teoria da modernização com cultura política. No artigo, “Cultura e Desenvolvimento Político”, o autor argumenta que as sociedades variam enormemente na medida em que enfatizam “valores de sobrevivência” ou “valores de auto-expressão”. As sociedades que valorizam este último tem maiores possibilidades de constituírem democracias, do que as sociedades que enfatizam os “valores da sobrevivência”. O autor questiona se os valores da auto-expressão ( confiança interpessoal/ tolerância e participação nos processos de decisão) levam à democracia? Ou seriam as instituições democráticas que fazem surgir os valores? Reconhece que é difícil estabelecer a causalidade, mas indícios sugerem que é a cultura que molda a democracia.
      Para desenvolver seu argumento, Inglehart, ao reclamar para si a condição de teórico da modernização, afirma que o mundo está mudando de modo a desgastar os valores tradicionais. Desse modo o desenvolvimento econômico traria o declínio da religião, do provincianismo e das diferenças culturais. Sobre a dimensão valores de sobrevivência e valores de auto-expressão, o autor considera que na transição para as sociedades pós-industriais, os valores auto-expressivos são comuns nas sociedades mais avançadas. Posto que as gerações que cresceram com garantias de sobrevivência estariam mais ligadas as questões em defesa do meio-ambiente, do movimento feminista e demandariam por maior participação em processos decisórios políticos e econômicos.
         No caso das sociedades que enfatizam os valores de sobrevivência, segundo o autor, são baixos os níveis de bem-estar subjetivo. Haveria pouca confiança interpessoal, intolerância com grupos de fora, pouco apoio à igualdade de sexos, a ênfase em valores materialistas, fraqueza em ativismo ambiental e opiniões favoráveis a um governo autoritário.
    A crença maior ou menor nos valores da sobrevivência e da auto-expressão produzirão consequências objetivas nas sociedades. Para ilustrar o autor examina uma variável chave da literatura sobre diferenças culturais, e um componente da dimensão sobrevivência e auto-expressão, a confiança interpessoal. Autores como Coleman, Almond e Verba, Putnam e Fukuyama sustentam que a confiança interpessoal é essencial para a construção das estruturas sociais de que a democracia depende, e das complexas organizações sociais em que se baseiam as empresas e economias de larga escala. Nesse ponto, Inglehart lança mão da variável religiosa para tentar demonstrar que em todas as sociedades protestantes há maior confiança que nas sociedades católicas e islamitas. Mesmo quando se isola os níveis de desenvolvimento econômico evidenciado pelo PIB/per capita, as sociedades católicas mais ricas, ficam abaixo das sociedades protestantes mais prósperas em termos de confiança interpessoal.
        Contudo, buscando conciliar teoria da modernização com cultura política Inglehart assume que o desenvolvimento econômico constitui a via mais promissora para o incremento de uma cultura política que enfatize os valores da auto-expressão. Posto que o desenvolvimento econômico leva a dois tipos de mudança que favorecem a democracia:

1a) mudanças na estrutura social, urbanização, educação de massa, especialização profissional, crescentes redes organizacionais, maior igualdade de renda e diversos interesses que mobilizam para a participação política;

2a) o desenvolvimento econômico também favorece mudanças culturais que ajudam a estabilizar a democracia. Ele tende a aumentar a confiança interpessoal e a tolerância, e leva à difusão dos valores pós-materialistas que atribuem alta prioridade aos valores da auto-expressão.

          Com níveis crescentes de desenvolvimento econômico, surgem padrões culturais cada vez mais partidários da democracia, tornando os públicos mais propensos à democracia e mais capazes de alcançá-la. Contudo adverte que embora sociedades mais prósperas tenham mais possibilidades de ser democráticas, só riqueza não leva automaticamente à democracia, o que seria o caso para o autor de alguns países árabes.
          A disseminação da confiança, da tolerância, do bem-estar e dos valores participativos presentes na dinâmica da dimensão sobrevivência/auto-expressão são cruciais, posto que a longo prazo a democracia não é alcançada com mudanças institucionais ou manobras no nível das elites. Sua sobrevivência também depende dos valores e das crenças das pessoas comuns.
        A temática cultura política invoca necessariamente mais um conceito e um autor relevante. Estou me referindo ao conceito de “Capital Social”, desenvolvido por Robert Putnam. O autor enfatiza a confiança nas instituições como chave analítica para caracterizar o maior ou menor desenvolvimento social, político e econômico de determinadas comunidades.
           Sabemos que Putnam em “comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna” (1993), dedicou-se a tentar responder por que afinal as instituições italianas podiam exibir desempenhos tão díspares de umas províncias para outras, já que todos os governos regionais dispunham de instituições políticas idênticas. Resumidamente, o autor aponta duas dinâmicas para o problema do desempenho institucional: uma que ele chama de “círculo vicioso autoritário”, e a outra, em contraste, de “círculo virtuoso democrático”. No primeiro caso a ordem é patrocinada de forma coercitiva, por meio do medo e da repressão, deixando em segundo plano a construção de qualquer relação de confiança mútua amplamente disseminada na população. Na segunda dinâmica, investe-se em regras impessoais, que por princípio devem ser seguidas por todos, independentemente de status social. Para sua eficácia deve se generalizar a idéia de que os interesses e ganhos imediatos devem ceder para dar lugar a compensações futuras, na presunção de que a observância universal de determinadas regras renderá frutos no longo prazo.
         O arranjo autoritário constitui um círculo vicioso pois padrões de violência institucional geram comportamentos não-cooperativos. Sendo assim há pouco ou nenhum laço horizontal de confiança mútua, por conseguinte interditam-se compromissos que envolvam compensações futuras. O círculo virtuoso da democracia, por sua vez, inspira confiança na medida em que o acatamento das regras impessoais podem gerar um ambiente em que mesmo aqueles que as violem, mesmo que tirem proveitos imediatos, serão onerados no futuro. Trata-se de uma solução análoga ao da Teoria dos Jogos, mais precisamente por conta da racionalidade em adotar padrões de equilíbrios cooperativos, isto é, o custo maior é não cooperar.
         A interpretação que Putnam empresta a seus dados corrobora fortemente a análise do dilema dos prisioneiros. Isto é , de um lado a existência de laços de confiança mútua reforça os mecanismos de cooperação entre os cidadãos e favorece o desempenho das instituições políticas; o desempenho institucional eficiente atua sobre o contexto reduzindo as incertezas e reforça o nível de cooperação e de confiança no interior da população. No sentido inverso, no círculo vicioso, o mau desempenho das instituições reafirma e reforça os traços de desconfiança mútua disseminados, aumentando as áreas de incerteza quanto ao futuro e inviabilizando qualquer disposição de abrir-se mão dos ganhos imediatos com apoio numa presunção de reciprocidade futura.
         Cumpre ressaltar que a ênfase nas formulações de Putnam, consistiam em identificar diferenças de desempenho institucionais em contextos democráticos idênticos. Nesse sentido ele identifica uma variável independente relevante, que é o seu índice de comunidade cívica, que inclui medidas de comparecimento a referendos, leitura de jornais, proliferação de associações desportivas e culturais e uma proxy (procuração) de identificação partidária. Tratando aprioristicamente sobre os mecanismos que poderiam explicar a correlação encontrada, recorre a noção de Capital social (substitui a idéia de comunidade cívica) e produz a conjectura de que seria a confiança interpessoal o mecanismo pelo qual o capital social produziria seus efeitos sobre o desempenho institucional.

Ilton Freitas

Um comentário:

  1. Grato, caro Ilton!
    Pergunto-lhe: qual é a sua visão pessoal sobre a atual conjuntura politica brasileira e as suas propostas estratégicas para o maior/melhor funcionamento de uma verdadeira democracia (finalmente!) em nosso pais?
    abraço,
    Rubens

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