quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A Sempre Necessária Reflexão Sobre a Democracia

Nesse  post resgato - num artigo de minha autoria - uma reflexão recente sobre democracia. Sempre foi alvo de minhas predileções intelectuais a teoria democrática. Mas para além de uma temática predileta penso que o desenvolvimento material e espiritual de uma sociedade demandam instituições e cultura democráticas. Tendo claro que por mais que avancemos, nossos arranjos democráticos permanecerão sempre distantes do ideal democrático! Boa leitura!  


Atenas e as ruínas da Acrópole (sec. V a.C.), o berço da democracia


Clique em "mais informações" para ler o artigo



Teorias Contemporâneas da Democracia
Nossa exposição divide-se em dois momentos: primeiramente abordaremos as duas principais tradições da teoria democrática: a dimensão da competição (minimalista), e a dimensão da deliberação ou participação. Por fim trataremos do debate atual sobre a qualidade da democracia.
Na obra “Liberalismo contra populismo: uma confrontação entre a teoria da democracia e a teoria da escolha racional” (1982), o autor W. Riker sustenta que as definições de democracia são tantas, que é impossível alguém ler a todas! Contudo, a moderna teoria política reconhece a democracia como sendo formada por ao menos duas dimensões: a competição e a participação política. Isso não quer dizer que um sistema democrático se resuma a um sistema participativo e competitivo apenas.
O próprio Robert Dahl, em sua obra clássica a “Poliarquia” (1972)relaciona outras dimensões para caracterizar uma democracia, que segundo ele trata-se de um sistema ideal na qual os arranjos institucionais são meras aproximações imperfeitas!
As duas dimensões da democracia (competição e participação) por seu turno configuram-se contemporaneamente cada vez menos como rivais, pois num certo sentido – ainda que com dinâmicas diferentes – as relações entre ambas dimensões apresentam-se repletas de oportunidades dialógicas, e graus variados de complementaridades, considerando as realidades concretas de cada país.Todavia, faz-se necessário que em linhas gerais exploremos cada uma das dimensões da democracia como ponto de partida para nos aproximar do debate acerca da qualidade da democracia.
A dimensão da competição
Comecemos pela dimensão da competição. A democracia como mercado, conforme artigo de Carla Sales intitulado “As Máscaras da Democracia: Notas sobre a teoria democrática contemporânea à luz dos eixos dahlsianos” (RSP, 2005). Conforme a autora, na perspectiva de J. Schumpeter (“Capitalismo, socialismo e democracia”, 1942), que era economista, parte-se do conceito de que filósofos do século XVIII atribuíram a democracia, isto é, “a democracia ou o método democrático seria um arranjo institucional para se chegar a decisões que visassem o bem comum. O povo decidiria as questões de seu interesse elegendo seus representantes, que deveriam reunir-se para realizar a vontade do povo”. Por muito tempo tal conceito foi aceito como a doutrina clássica da democracia.
Schumpeter vai desenvolver uma crítica mordaz aos dois pilares da teoria clássica: o bem comum e a vontade geral. As objeções de Schumpeter partem da premissa de que não existe algo que seja um bem comum única e perfeitamente determinado, sobre o qual todos concordam racionalmente. Tampouco não há nenhuma garantia de que por mais racionalmente ideal seja uma decisão, ela coincidirá com a vontade do povo. Pois as vontades individuais são muito divididas e provavelmente as decisões políticas não serão conformes ao que o povo deseja.
Para Schumpeter a democracia é um método que possibilita o alcance de determinados fins, isto é, a tomada de decisões políticas, administrativas e legislativas, por parte dos líderes eleitos pelo povo. Na sua visão a democracia consiste num instrumento em que indivíduos por meio de eleições competitivas adquirem os votos para gozarem de poder decisório em nome dos eleitores.
Em síntese, o modelo schumpeteriano primeiramente faz um contraponto a visão clássica de soberania popular. Para ele a soberania restringe-se ao processo eleitoral, 2º) concebe a democracia como um meio para atingir determinados fins, 3º) o viés normativo dá-se em relação ao acordo entre “as regras do jogo”, para viabilizar o dissenso em relação aos fins, e , 4º) defende “o governo dos especialistas”, isto é, uma vez eleitos os representantes a atuação política é tarefa deles, e os eleitores não devem instruí-los sobre o que fazer (elitismo democrático).
Mais recentemente e nos marcos da perspectiva schumpeteriana Adam Pzeworski, junto com Michael Alvarez, José A. Cheibub e Fernando Limongi, in: Democracy and Development: Political Institutions and Material Well Being in the World, 1950-1990 (2000), sustentam que para caracterizar um país como democrático o chefe do executivo deve ser eleito, a legislatura precisa ser eleita, deve haver mais de um partido e a alternância de poder leva em conta as regras anteriores.
A Dimensão da Participação
A partir dos anos 70 intensificaram-se as vertentes participacionistas e deliberativas da democracia, na medida em que perdem vigor as teorias da soberania limitada e do elitismo democrático, hegemônicos desde a metade do século XX.
O cientista político Luis Filipe Miguel aponta os elementos essenciais do discurso deliberacionista: “ A democracia deliberativa exige que as decisões políticas sejam tomadas por aqueles que estarão submetidos a elas, por meio do raciocínio livre entre iguais. Participação de todos, argumentação racional, publicidade, ausência de coerção e igualdade são os valores que devem balizar as tomadas de decisão em regimes democráticos. A ausência de qualquer um deles compromete a legitimidade dos resultados”, em artigo publicado pela Revista Brasileira de Ciências Sociais, em 2001.
Numa crítica ao minimalismo schumpeteriano, D. Held (1996) vai salientar que Schumpeter não considerou a forma na qual os modelos competitivos podem ser combinados com esquemas participativos, envolvendo reuniões face a face para estimular e formular a política e as decisões pelo voto majoritário, eleições de representantes para funções específicas, etc.
Nos debates envolvendo os modelos argumentativos, John Rawls e Jürgen Habermass foram as grandes referências teóricas. J. Rawls é considerado por muitos como um dos principais filósofos políticos norte-americanos, e é autor de dois livros essenciais para o debate político contemporâneo. “Uma teoria da Justiça” (1971) é considerada sua grande obra. Sob novas bases Rawls resgata a teoria contratualista. Quais novas bases? Enquanto que para os contratualistas clássicos o pacto fundamentaria a legitimidade do poder político, para Rawls o problema central era a justiça, mais precisamente sua concepção política de justiça equivalente ao princípio da equidade. O “Liberalismo Político” (1991) é num certo sentido uma continuidade da obra anterior, além de permitir-lhe desenvolver a idéia de que o grande problema do liberalismo é em compreender como sociedades divididas por doutrinas abrangentes e conflitivas (numa sociedade pluralista) podem gerar consensos sobrepostos.
Contudo, é numa passagem de “Uma teoria da justiça” sobre as decisões da maioria que Rawls avança na sua concepção de deliberação. Dizia ele: “nada garante a idéia de que a vontade da maioria está sempre correta. Na realidade, as concepções de justiça tradicionais não mantiveram essa doutrina, ao sustentarem que o desfecho do processo de votação está sempre sujeito a princípios políticos. Ainda que em determinadas circunstâncias seja justificado que a maioria detenha o direito constitucional de legislar, isso não significa que as leis promulgadas sejam justas” (Rawls, 1971)
Outra forma de encontrar elementos deliberativos na teoria rawlsiana é sua pressuposição de que as preferências individuais podem não ser pré-estabelecidas – como defende Antony Downs – e que portanto há que se reconhecer “discordâncias razoáveis entre indivíduos razoáveis”. Além do que tais diferenças cumprem o papel de “balancear os diversos fins”. No entanto, não encontra-se na teoria de Rawls um aprofundamento da deliberação argumentativa a partir de fóruns democráticos, que exercitem a produção de consensos sobrepostos. Na verdade para Rawls a razão pública não se exercita em fóruns não estatais.
A discussão sobre o que poderiam ser os fóruns argumentativos foi levantada por J. Habermass ao longo de suas obras. Em “A transformação estrutural da esfera pública”, (1989), Habermass demonstrará preocupação com a constituição de uma esfera pública de argumentação. No processo histórico que leva a ascensão política da burguesia, uma nova forma de relação com o poder é estabelecido. Sobretudo a partir do princípio da publicidade onde os indivíduos demandam dos governantes a justificação moral dos seus atos em público. O fundamental aqui é reter a idéia de que o surgimento de uma esfera pública de argumentação não estatal confere aos indivíduos um espaço de interação face a face, em que são debatidos os conteúdos das decisões políticas tomadas pelas autoridade, e onde demandas podem ser formuladas para serem encaminhadas ao Estado.
Todavia Habermass identificará que a esfera pública de argumentação tal qual suas características originais (séc. XVIII) entrou em decadência no século XX, pois o que prolifera na sociedade de massas são as razões não públicas, que colonizaram a esfera pública, e comprometeram a “opinião pública”.
No início dos anos 80 Habermass publica sua “Teoria da Ação Comunicativa”(1984). Nesse empreendimento o autor dá início a um processo de aplicação da sua concepção de teoria do discurso à política contemporânea. Ele percebe que o problema da legitimidade na política contemporânea não está ligado apenas ao problema da expressão da vontade da maioria no processo de formação da vontade geral (ruptura c pensamento de Rousseau), mas também estaria ligada a um processo de deliberação coletiva que contasse com a participação racional de todos os indivíduos interessados, e/ou afetados por decisões política.
Esse posicionamento leva Habermass a formular o assim chamado princípio D: “Só são válidas aquelas normas-ações com as quais todas as pessoas possivelmente afetadas possam concordar como participantes de um discurso racional” (Entre fatos e normas, 1995). Duas características do referido princípio merecem destaque para a discussão sobre deliberação; 1ª) não é suficientemente legítimo dizer à minoria que ela possui menos votos. O que é preciso é chegar a uma posição racional no debate político que a satisfaça; 2ª) Tampouco o processo de formação de preferências reduzem-se às eleições. A deliberação democrática depende de uma rede de processos de barganha regulados de forma justa, e de formas de argumentação, incluindo discursos pragmáticos, éticos e morais, cada um deles apoiado em diferentes pressupostos e procedimentos comunicativos (universais, racionais e tolerantes).
O que Habermass faz é rejeitar parcialmente ao menos dois princípios da política contemporânea expressos na vontade geral da maioria e nas preferências pré-estabelecidas e apuradas em processos eleitorais. Na verdade Habermass opõe uma terceira concepção baseada na idéia de deliberação argumentativa. Nessa concepção é atribuída a esfera pública de argumentação como o locus para uma deliberação comunicativa, na qual as diferentes concepções morais, e as diferentes identidades culturais entrariam em contato, gerando uma rede procedimentos comunicativos.
Todavia, a questão que se coloca para a concepção habermasiana de democracia deliberativa é como se daria a relação entre essa rede de deliberação pública e os sistemas políticos e administrativos, e, portanto, como pensar a forma institucional desses arranjos deliberativos (autores como Arato, Cohen e J. Bohman vão tratar de articular respostas para essa questão).
Dois autores, Diamond e o Morlino (in The Quality of democracy, 2004), propuseram que se pensasse na qualidade da democracia a partir de oito dimensões, sendo que as cinco primeiras correspondem a regras e práticas de procedimentos. A idéia dos autores é que a maior ou menor articulação entre essas dimensões impactem uma maior ou menor democraticidade de uma determinada democracia contemporânea em análise;
  • Primado da lei (governo das leis);
  • A participação dos cidadãos;
  • A competição política (eleições limpas e justas);
  • Accountability (vertical, social e horizontal);
  • As liberdades civis (associação, reunião, expressão, imprensa e o devido processo legal);
  • Os direitos políticos (votar, ser votado);
  • igualdade política e seus correlatos, a igualdade social e econômica;
  • Responsividade governamental (transparência);
Em muitas democracias contemporâneas – sobretudo dos países beneficiários da 3ª onda da democratização - o que efetivamente apresenta-se como deficitário são algumas instituições básicas do Estado moderno. Posto que podem não ter sido conformadas adequadamente nos estágios iniciais do processo de redemocratização, e, por conseguinte estarem operando com base em distorções de seus objetivos (judicialização da política, por exemplo)!
Num ensaio importante de Guillermo O`Donnell, “Poliarquias e a (In)efetividade da lei na América Latina”, de 1998, publicado no livro “O Não Estado de Direito na América Latina” 2000(org. Mendez-Pinheiro-O’Donnell), o autor sustenta que na América Latina a desigualdade social torna deficitário o Estado Democrático de Direito nos seguintes aspectos:
  • Falhas na legislação existente (minorias-situação penal-presídios)
  • Aplicação discricionária da lei (percepção de justiça)
  • Relação autoritária da burocracia com o cidadão comum;
  • Difícil acesso ao judiciário;
  • Ilegalidade em alguns casos da ação governamental;
Ao considerar o Estado de Direito um sistema legal - que além dos direitos políticos e sociais, garante, preserva e estimula a autonomia e responsabilidade dos cidadãos – na América Latina, por conta da extrema desigualdade social os cidadãos estão incapacitados ou desabilitados para exercerem a autonomia. A situação equivale a uma cidadania truncada. Portanto, O’Donnell caracteriza que na região ocorre a ausência do componente formal da democracia(direitos civis), e propõe a criação de uma rede de accountabilities sobre os governos (idéia do remédio institucional)!
Contudo, o debate acerca da qualidade da democracia em nossa região e em nosso País, não pode dissociar-se da importância em defendê-la incondicionalmente. Por certo que ao refletirmos sobre democracia a partir de estudos e de autores clássicos antevemos os grandes desafios para a sua construção. Por seu turno a democracia constitui-se no horizonte normativo da Ciência Política, é indubitável! Espera-se o mesmo dos governos, partidos e movimentos progressistas


Ilton Freitas
Fevereiro 2015
Bibliografia consultada


AVRITZER, L. Teoria Democrática e Deliberação Pública. Lua Nova. São Paulo. N. 49, p. 25-45. 2000


BRETON, Philippe. A incompetência democrática. A crise da palavra na origem do mal-estar na política. Loyola. São Paulo. 2008


CAMPOS, Ana Maria. Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública. V. 24, n. 2, p. 30-50. Fev/Abr, 1990


DAHL, R. Poliarquia: participação e oposição. USP. São Paulo, 1997.


FREITAS, Ilton L. P. de. E-Governo e Accountability nas Democracias: Aspectos Teóricos e Desenvolvimentos Recentes no Brasil. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Ciência Política. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. 2011


GORMLEY, Jr; WILLIAM, T; BALLA, Steven J. Bureaucracy and Democracy. Accountability and Performance. Washington D. C., CQPress, 2007


HUNTINGTON, S.; WATANUKI, J. The crisis of democracy: report Governability of Democracies to the Trilateral Comission. New York: New York University. 1975


MEYER, Thomas; HINCHMAN, Lew. Democracia Midiática. Como a Mídia Coloniza a Política. Loyola. São Paulo. 2008


MIGUEL, L. F. Impasse da accountability: dilemas e alternativas da representação política. Revista de Sociologia e Política. N. 25. Curitiba. 2005 (SciELO)


O'DONNELL, Guillermo. Democracia, Agência e Estado. Paz e Terra. São Paulo. 2011
___________Poliarquias e a (In) Efetividade da Lei na América Latina: uma conclusão parcial. In: MÉNDEZ, Juan E.; O'DONNELL, G.; PINHEIRO, Paulo S. Democracia, violência e injustiça. O não-estado de direito na América Latina. Paz e Terra. São Paulo. 2000


SALES, Carla V. As Mascaras da Democracia: Notas sobre a teoria democrática contemporânea à luz dos eixos dahlsianos. Revista de Sociologia e Política. N. 24, P. 233-245. Curitiba. Jun/2005


SANTOS, Boaventura de S. Democratizar a democracia. Os caminhos da democracia participativa. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2002



Nenhum comentário:

Postar um comentário