sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Brasil 2016: A Experiência com a “Kakistocracia"

| Texto Ilton Freitas


Um importante politólogo italiano, Michelangelo Bovero, refletindo sobre os descaminhos da democracia  sob os auspícios do primeiro-ministro Silvio Berlusconni, não hesitou em afirmar que o ethos do governo se aproximava de uma “Kaquistocracia”. No “Dicionário de Sociologia”, numa de suas primeiras edições em inglês, no ano de 1944, o termo Kakistocracia era definido por Frederick M. Lumley como: “...o governo dos piores; estado de degeneração das relações humanas em que a organização governamental está controlada e dirigida por governantes ignorantes e chulos, e/ou por camarilhas inescrupulosas”. Nos idos de 1974, o filósofo argentino Jorge L. García Venturini explicava que “Kakistos” é o superlativo de Kakos, que significa mal e também sórdido, sujo, vil, incapaz, perverso, nocivo, funesto e outras coisas semelhantes. Portanto, se “Kakos” é mal, seu superlativo “Kakistos” é o mal maior. Sendo assim a Kakistrocracia era o governo dos piores!









Entrementes, o ex-premier Silvio Berlusconi, um magnata da mídia-empresa, fundou em 1993 o partido Fuerza Italia. Beneficiado pela crise do sistema político italiano por obra da “operação Mãos Limpas”, e com o apoio dos meios de comunicação se elegeu ao parlamento pela primeira vez em 1994. Suas propostas essencialmente neoliberais consistiam em apoiar a livre empresa, em vagamente combater a corrupção e a diminuir o déficit fiscal. Voltou a ganhar as eleições em 2001, e não hesitou em apoiar a guerra genocida promovida pelo presidente Bush contra o Iraque em 2003. Em 2008 se elegeu para seu último mandato permanecendo no poder até 2011. Nos últimos dez anos foi e tem sido acusado de evasão fiscal, lavagem de dinheiro, participação em homicídio, escândalos sexuais e em casos de corrupção. Foi condenado em alguns casos sendo absolvido em segunda instância, e alguns crimes de que era acusado prescreveram. Seu legado econômico e político foi ruinoso para a Itália. Do ponto de vista econômico fez o PIB italiano decrescer, o que só foi comparável -  em termos proporcionais em igual período - a países devastados como o Haiti. Seu governo rendeu-se ao capital financeiro e os italianos amargam a mais de doze anos um desemprego superior a 11% da população ativa, e uma economia que se desindustrializou e deixou de crescer. Berlusconi se empenhou em fabricar versões e narrativas sobre suas ações através dos meios de comunicação, pois segundo sua verve importavam menos os fatos e mais as interpretações midiáticas. Qualquer coincidência como o modus operandi da mídia brasileira não é mera coincidência.

Seguindo as pistas de Bovero, o Brasil sob o governo usurpador de Michel Temer, preenche todos ao quesitos e requisitos para uma Kaquistocracia. Basta verificar o currículo ou a “ficha corrida” da “gang dos seis” peemedebistas (Cunha, Padilha, Renan, Geddel, Jucá e Eunício), que cumpriram o papel de principais articuladores do golpe parlamentar contra o governo legítimo de Dilma Rousseff. Todos possuem as piores credenciais para o exercício de funções públicas, quiçá governamentais. A começar pelo próprio Temer que é acusado de receber propina por ocasião de obras no Porto de Santos aos tempos do governo FHC, que foi pego pela lei da Ficha Limpa que o torna inelegível, que foi delatado na dita operação “lava à jato” de receber propina de R$ 10 milhões de empreiteiras e mais R$ 1 milhão em cheque por ocasião da campanha eleitoral de 2014. Os malfeitos do usurpador presidente talvez só se equivalham a nulidade de sua carreira parlamentar arquitetada para operar nas sombras, e nos interstícios dos descaminhos e desvios dos recursos públicos. Tal personagem infame cevou uma húbris e uma ambição que o levou a fazer parte da chapa de Dilma nas eleições de 2014.

Mas Temer nada mais representa do que a conjugação da ethos de grande parte da elite econômica brasileira (burguesia compradora), do fisiologismo da maioria do Congresso Nacional, dos partidos que aderiram ao golpismo e das castas privilegiadas e proto-fascistas do Judiciário e Ministério Público, que se servem do Estado nacional. Muitas vezes quando analisamos os governos, temos que levar em conta uma variável importante, isto é, a qualidade da respectiva liderança em tela. Em regimes presidencialistas o peso dessa variável importa tanto no sentido positivo, quanto negativo. A ausência de atributos e virtudes do golpista-presidente Temer, o confeccionou para a empresa política que liquidou com a democracia no País, e criou as condições para a mutazione del statu. Os interesses ilegítimos que se propõe a derrogar a Constituição Cidadã de 1988, a destruir a soberania do País liquidando suas riquezas e a fazer retroceder todas as conquistas sociais das classes populares obtidas nos governos petistas, encontraram em Temer sua mais perfeita tradução.  

Por óbvio que um produto político tão deteriorado como Temer, fez imprescindível para a sua “legitimação” a estética embromadora e manipuladora dos meios de comunicação de massa. Contudo, a inanição moral de um personagem como Michel Temer faz todo o sentido quando o linkamos num contexto maior. A destruição da nação e do Estado brasileiro a partir do entreguismo mais abjeto de nossas riquezas, e a interrupção abrupta do pacto nacional representado pela Constituição de 1988, são tarefas condizentes para projetos autoritários de poder – no caso - na sua versão kaquistocrática. Conduzir uma sociedade para a barbárie através de projetos como a PEC 55 (congelamento dos gastos com saúde, educação, etc.), a proposta de reforma previdenciária e a flexibilização das leis trabalhistas só pode ser obra do governo dos piores! Contudo, não nos equivoquemos. Como o dito popular “nada é tão ruim que não possa piorar”! Quero dizer com isso que o apodrecimento do governo e das instituições da república podem dar um passo adiante com o fascismo. O fascismo possui todas as características de um governo dos piores, com uma diferença. Enquanto os kaquistocratas se regozijam com o saque das classes populares, os fascistas vão mais além, posto que as encarceram e as eliminam fisicamente. Que as forças progressistas da sociedade saibam resistir e derrotar os inimigos do povo brasileiro!



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  i No livro: Bovero, Michelangelo. Contra o governo dos piores: uma gramática da democracia. Campus, 2002.

Um comentário:

  1. Grato pela sua clareza, companheiro Ilton! Será muito útil se você pudesse (e sei que pode!) analisar o mesmo quadro do ponto de vista do interesse pelo bem comum da maioria do povo brasileiro, incluindo o papel que as ditas forças progressistas desempenharam e seguem desempenhando na atual configuração formal de Estado [sic]. Tendo vivido na Itália entre 2001 e 2005, sou testemunha de que as classes exploradoras/rentárias não necessariamente se fazem valer das estruturas e práticas abertamente fascistas para garantir os seus lucros com a exploração e opressão da maioria trabalhadora - ao contrário, estas forças preferem já há bastante tempo a fachada da "normalidade institucional democrática" [sic] para otimizar ainda mais a sua dominação política e econômica sobre o povo; na verdade, estes regimes de "TV-realidade" são mais eficazes do ponto de vista dos interesses das classes dominantes e seus sócios e lacaios do que o fascismo aberto. Berlusconi foi a aparência escolhida pelos exploradores italianos para sugar ainda mais o sangue dos trabalhadores italianos - e o sistema então montado segue funcionando até hoje, mesmo com outros fantoches atuando como executivos e legislativos formais. Os exemplos históricos similares e atuais de outros países abundam, basta observar o quê ocorre ao redor do mundo - p.ex.: Reino Unido, Alemanha, Japão, EUA, etc. A sua contribuição para a prática da crítica e análises da nossa realidade é muito preciosa para a elaboração de uma política unificadora das organizações populares autônomas em nosso abusado país, caro Ilton! Avante, companheiro, grato por tudo! Abraço solidário, Rubens

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