terça-feira, 14 de abril de 2015

Crise de Representação e Partidos Políticos Contemporâneos








  

Governo Representativo e Partidos Políticos: Debate e Perspectivas para o Século XXI

Introdução

  A democracia representativa após a II Guerra Mundial (1939-1945) afirmou-se como o regime político hegemônico no ocidente, e recebeu um novo impulso com a terceira onda de democratização a partir dos anos setenta do século passado. No período ocorreram a derrocada dos regimes autoritários no sul da Europa (Espanha/Portugal e Grécia), e o fim das ditaduras militares na América do Sul, dentre outras. A rigor o impulso democratizante havia se iniciado com a independência das ex-colônias europeias na África e alhures, a partir de fins dos anos cinquenta e nos sessenta. É importante localizar na cronologia dos acontecimentos as grandes viragens da história, e identificar que as democracias mais recentes - como a brasileira - resultaram da combinação de alguns elementos fundamentais como as grandes mobilizações da sociedade civil pelo retorno da democracia, e a luta política envolvendo os partidos e suas lideranças. 

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  Contudo, a resultante desse processo consistiu na retomada do modo de governação democrática da sociedade. Com governos eleitos, com a legislatura eleita, com competição eleitoral (mais de um partido em condições de vencer as eleições) e alternância de poder. Sendo assim, e para fins da reflexão proposta nesse artigo, nossas democracias são representativas porquanto se afastam da noção clássica grega de governo do povo, pois o governo é exercido de forma significativamente mediado por representantes eleitos.
  No entanto é inegável que as democracias representativas contemporâneas padecem de deficits e de desencantos para com suas instituições (governos e legislaturas). As democracias mais antigas (Europa/América do Norte) são acossadas pelo absenteísmo eleitoral, pela apatia de boa parte dos eleitores e pelo ascenso de projetos políticos antidemocráticos e de extrema direita como, por exemplo, a xenófoba Frente Nacional na França. Na América Latina o panorama não diverge muito. Nas mensurações sobre o estado da democracia na América Latina, o instituto de pesquisa Latinobarômetro (sediado em Santiago/CH) revela que desde os anos noventa os partidos, os governos e as assembleias de representantes são as instituições menos prestigiadas pelos cidadãos.
  Para enfrentarmos esse debate de forma mais rigorosa - em tempos de reação contra a democracia - importa o resgate da evolução do governo representativo nas democracias ocidentais, e verificarmos com uma boa resolução a situação e as perspectivas dos intermediários da representação política, isto, é os partidos políticos.

O Que é Representação e o Governo Representativo

  Partindo de clássicos como Thomas Hobbes (1588-1679), autor de “O Leviatã”, publicado em 1651, representação é a transferência e posse de autoridade, que nada mais é do que o direito de agir do soberano. Desse modo o representante é quem está autorizado a agir! Mais adiante e numa perspectiva próxima as tradições defendidas pelos partidos mais à esquerda do espectro político contemporâneo, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor do “Contrato Social”, de 1762, considera que o poder soberano não pode ser representado. Nesse caso a representação não é um recurso sócio-político válido, isto é, a “vontade geral” não pode ser representada.
  Como vimos a temática da representação entre autores clássicos é controversa. Contudo, nos termos em que o debate sobre representação se processa atualmente, há um razoável acordo entre os politólogos de que não existe representação quando os governantes não são periodicamente eleitos pelos governados.
  Um autor contemporâneo, o francês Bernardo Manin (1951), afirma que os princípios do governo representativo como conhecemos hoje foram formulados no século XVIII, por autores como Edmund Burke, Stuart Mill e os norte-americanos Madison, Hamilton e Jay, do semanário “Os Federalistas”, para citar alguns.
  Manin percebe entre os formuladores das noções do governo representativo diferenças significativas em relação ao ideal democrático do governo do povo, pelo povo e para o povo. Ademais o governo representativo nunca foi um sistema em que os eleitos têm a obrigação de realizar a vontade dos eleitores. Isto é, a forma representativa de governo nunca foi uma forma indireta de soberania. O autor sistematiza os quatro princípios do governo representativo: I -os representantes são eleitos pelos governados, II – os representantes conservam uma independência parcial diante das preferências dos eleitores, III- a opinião pública sobre assuntos políticos pode se manifestar independentemente do controle do governo, e IV – as decisões políticas são tomadas após debate (por consenso, ou pela regra majoritária).
  Do século XVIII até os nossos dias a experiência ocidental com os governos representativos permite-nos classificá-los em três tipos ideais: a) o “parlamentar”, b) a “democracia de partido” e c) a “democracia de público”. Evidentemente que os tipos ideais não esgotam todas as formas possíveis, e nem todas as formas que o governo representativo assumiu na realidade. Ou seja, as várias modalidades podem coexistir e se fundir umas nas outras, mas dependendo do tempo e do lugar uma forma, ou, outra, predomina.


O Governo Representativo e o Partido Político

  Esquematicamente o quadro abaixo expressa no tempo o tipo ideal de governo representativo e o respectivo equivalente partidário:

Modelo Parlamentar (sec. XVIII a meados do século XIX
Partido de “Notáveis”
Democracia de Partido (século XIX à metade do século XX)
Partidos Burocráticos de Massa
Democracia de Público (anos 60 do século passado em diante)
Partido Profissional Eleitoral
  No Modelo Parlamentar onde a noção de partido restringia-se ao parlamento, não havia coincidência entre a opinião pública e sua expressão eleitoral no parlamento. Quando muito o povo chegava às portas do parlamento com alguma reivindicação ou petição específica. A “opinião pública” não podia encontrar expressão adequada no parlamento através do voto, mesmo porque os sufrágios eram censitários (por renda) e excludentes (não universal). No velho continente os sem-voto passaram a se organizar através de associações políticas extra-parlamentares como o movimento cartista por reivindicações trabalhistas no Reino Unido , a luta pelos direitos dos católicos, as demandas por reforma parlamentar, o repúdio a discricionariedade das leis (lei do trigo), etc.
Na verdade no Modelo Parlamentar o locus por excelência da atividade política era o parlamento, posto que os representantes não estão submetidos à vontade dos seus eleitores. No caso o parlamento pode ser um local de deliberação no sentido pleno da palavra. Ou seja, um lugar onde os políticos definem suas posições através da discussão e o consentimento da maioria é logrado através do debate.
  Contudo a entrada em cena do movimento operário no século XIX, resultou no surgimento dos grandes partidos socialistas de massas. Foi emblemático que na revolução republicana na França em 1848 - no embalo das campanhas pelo sufrágio universal - os eleitores passaram de 800 mil, para 10 milhões. Com o advento do sufrágio universal - seguindo Manin – o Modelo Parlamentar e seu equivalente partidário, o Partido de Notáveis, cede terreno para a Democracia de Partido, e para o Partido Burocrático de Massas.
  No curso da “Democracia de Partido” do século XIX a meados do século seguinte, concomitantemente à extensão do direito ao voto, surge o voto partidário. Posto que o pertencimento a uma determinada classe social fidelizava o eleitor ao partido que lhe proporcionava expressão parlamentar.
Sendo assim era crível que os partidos políticos, suas burocracias e rede de militantes levaria o “cidadão comum” ao poder. Pois nesse contexto a representação se torna um reflexo da estrutura social. Entrementes, a “Democracia de Partido” implicava no fim dos representantes “notáveis” e do elitismo característico do “Modelo Parlamentar”. Aos partidos políticos competia a tarefa de mobilizar o eleitorado de modo mais amplo possível. Desse modo os partidos de massa transformaram-se no núcleo das democracias representativas, e os partidos socialistas , ou, social-democratas nos arquétipos do partido de massas contemporâneo. 
 
Partidos na “Democracia de Público

  Na literatura especializada da Ciência Política surge nos anos 50 a clássica obra “Political Parties”, em 1954, de Maurice Duverger. O autor asseverava que no contexto democrático se afirmavam os partidos de massas. Na busca de uma comparação Duverger consignava que os partidos eleitorais norte-americanos consistiam em casos de atraso organizativo.
Todavia, numa perspectiva diametralmente oposta a de Duverger é publicado em 1966, um trabalho intitulado “Political Parties and Political Development”, de autoria de um professor da Universidade de Princeton, Otto Kirchheimer. O artigo fora publicado no livro “The Transformation of Western European Party Systems”, organizado por J. La Palombara e M. Weiner. O argumento central de Kirchheimer invertia a lógica de Duverger. Pois para Kirchheimer os partidos de massas eram uma etapa em direção aos partidos eleitorais modernos.
  A transformação dos partidos de massa em partidos eleitorais não pressupunha o desligamento com a antiga base social. Por outro lado os partidos relevantes deveriam se abrir para um público mais amplo, e para outros grupos sociais. Nesse processo os partidos passaram por importantes transformações como a acentuada desideologização, concentrando-se em temas gerais tendo em vista a incidência num eleitorado amplo. Outra característica do Partido Eleitoral Profissional consiste na diminuição drástica do peso político da militância partidária, combinado com uma maior abertura junto aos grupos de interesse com ligações mais fracas à organização partidária (marginação). Como efeito da marginação (relações fracas) se enfraquece e se torna descontínua a relação partido/eleitorado.
  O equivalente partidário da “Democracia de Público” é o partido profissional eleitoral. À guisa de comparação com o partido burocrático de massa vejamos o quadro:

Partido Burocrático de Massa
Partido Profissional Eleitoral
Centralização burocrática por competência político administrativa
Centralização dos profissionais por competências especializadas
Ligações organizativas verticais fortes e apelo ao eleitorado fiel
Ligações organizativas fracas e apelo ao eleitorado de opinião
Predominância dos dirigentes internos e das direções colegiadas
Predominãncia de parlamentares, de figuras públicas e de direções personalizadas
Financiamento por meio de filiações e atividades colaterais
Financiamento por meio de grupos de interesse e dos fundos públicos
Ênfase na ideologia
Ênfase na “pauta”

  O quadro nos dá uma resolução comparada acerca dos “partidos profissionais eleitorais” com seu referente mais próximo. Obviamente que tratamos aqui de tipos ideais, porquanto a realidade é permeada por formas “não puras” e/ou híbridas. Todavia, é incontestável que os partidos relevantes assumiram em grande medida as características do “partido profissional eleitoral” nas democracias ocidentais.
  Para avançar na análise é mister identificar nexos explicativos para a afirmação e predominância dos partidos eleitorais. O cientista político italiano, Angelo Pannebianco, propõe algumas causalidades. Ele parte do pressuposto de que as transformações no mundo do trabalho como a automação das plantas industriais e, sobretudo, a III Revolução Técnico-Científica, escorada na informática e nas telecomunicações, repercutiu nos sistemas de estratificação social, tornando-os muito mais complexos. Desse modo, numa sociedade complexa a representação de um público diversificado traz consideráveis dificuldades aos partidos políticos. Posto que outras formas de representação de interesses de grupos emergem ao lado dos partidos profissionais.
  Noutra direção o autor evidencia a transformação estrutural da esfera pública, que foi colonizada pelos meios de comunicação de massas, ou, pela mídia empresarial. Sendo assim a televisão, em particular, redesenhou a organização partidária contemporânea acentuando o peso dos parlamentares em detrimento dos dirigentes e militantes. Ficou famosa a frase de um político do PSOE (Partido Social-Democrata Espanhol), da Espanha, no início dos anos oitenta, onde dizia que preferia “10 minutos na televisão à 10 mil militantes”. Portanto, e nas condições da “democracia midiática”, os códigos de exibição teatralizados da imprensa comercial em busca de audiência e patrocínios, foram assimilados pelos partidos. É fundamental compreender que o tempo da política tradicional e seu processamento mediante o exercício argumentativo é lento. A processualidade da política contrasta com as narrativas midiáticas interessadas na rápida dramatização dos eventos políticos. Posto que a mídia comercial demanda uma narrativa superficial, tendo em vista sua audiência e seus compromissos com os anunciantes.

Conclusões sobre o Governo Representativo e o Futuro dos Partidos

  A reflexão proposta por Angelo Pannebianco e outros autores sugere que o governo representativo contemporâneo se caracteriza pela presença de um novo protagonista, o eleitor flutuante, que é resultado – como vimos anteriormente – de uma estrutura social complexa. E pela existência de um novo fórum, os meios de comunicação de massa hegemonizados pela mídia comercial.
  Na perspectiva do autor a afirmação do partido profissional-eleitoral cria mais problemas do que pode resolver, posto que aumentaram as condições de instrução do eleitorado, e, por conseguinte, declinaram os comportamentos deferentes em relação aos representantes tradicionais. Ademais o partido profissional-eleitoral cria um vazio de identidades coletivas. O eleitor é mais independente por um lado, por outro, torna-se mais solitário e desorientado. Esse “mal-estar” do eleitor isolado resulta da perda de credibilidade e de atração das antigas estruturas de solidariedade.
  No que diz respeito aos partidos são consideradas três evoluções possíveis nos marcos de uma crise de credibilidade das instituições representativas. Primeiramente se considera que o partido profissional-eleitoral prenuncia a dissolução dos partidos como organizações. Em sendo assim se admite o agravamento das dificuldades dos regimes democráticos. Noutra perspectiva se propõe o retorno da função expressiva dos partidos e a reabilitação do espaço unidimensional direita versus esquerda. O que se afigura como a reproposição do modelo de disputa anterior à Democracia de Público, sob novas condições. Finalmente, não se pode desconsiderar um movimento considerável por inovação política com modalidades imprevisíveis. Tais inovações dificilmente serão produzidas pelas organizações políticas eleitorais-profissionais.
  Numa outra oportunidade abordaremos a situação do quadro político brasileiro analisando a evolução de nosso governo representativo, e a perspectiva dos partidos políticos. Por ora, e de forma preliminar, arriscamos a enunciar que a crise política em curso resulta, por um lado, dos dilemas das democracias contemporâneas como vimos acima, mas, por outro lado, devemos considerar que a conjuntura brasileira está atravessada por uma disputa política estendida. Ou seja, o resultado das eleições presidenciais não foi assimilado pela oposição e por seus aliados midiáticos. Além do mais o presidencialismo de coalizão encontra-se “circuitado” por conta da infidelidade do PMDB, comandado pelo presidente do Congresso, o deputado Eduardo Cunha. A complexidade do quadro político impressiona. Mais uma vez a democracia brasileira está desafiada a não sucumbir, pelo contrário, o desafio das forças progressistas consiste em enfrentar nossos deficits democráticos. Talvez um bom começo seja regulamentar o mercado de informações, democratizando-o e interditando a conformação de monopólios e do pensamento único.


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