Nesse post resgato - num artigo de minha autoria - uma reflexão recente sobre democracia. Sempre foi alvo de minhas predileções intelectuais a teoria democrática. Mas para além de uma temática predileta penso que o desenvolvimento material e espiritual de uma sociedade demandam instituições e cultura democráticas. Tendo claro que por mais que avancemos, nossos arranjos democráticos permanecerão sempre distantes do ideal democrático! Boa leitura!
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Atenas e as ruínas da Acrópole (sec. V a.C.), o berço da democracia |
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Nossa exposição divide-se
em dois momentos: primeiramente abordaremos as duas principais
tradições da teoria democrática: a dimensão da competição
(minimalista), e a dimensão da deliberação ou participação. Por
fim trataremos do debate atual sobre a qualidade da democracia.
Na obra “Liberalismo
contra populismo: uma confrontação entre a teoria da democracia e a
teoria da escolha racional” (1982), o autor W. Riker sustenta que
as definições de democracia são tantas, que é impossível alguém
ler a todas! Contudo, a moderna teoria política reconhece a
democracia como sendo formada por ao menos duas dimensões: a
competição e a participação política. Isso não quer dizer que
um sistema democrático se resuma a um sistema participativo e
competitivo apenas.
O próprio Robert Dahl, em
sua obra clássica a “Poliarquia” (1972)relaciona outras
dimensões para caracterizar uma democracia, que segundo ele trata-se
de um sistema ideal na qual os arranjos institucionais são meras
aproximações imperfeitas!
As duas dimensões da
democracia (competição e participação) por seu turno
configuram-se contemporaneamente cada vez menos como rivais, pois num
certo sentido – ainda que com dinâmicas diferentes – as relações
entre ambas dimensões apresentam-se repletas de oportunidades
dialógicas, e graus variados de complementaridades, considerando as
realidades concretas de cada país.Todavia, faz-se necessário que em
linhas gerais exploremos cada uma das dimensões da democracia como
ponto de partida para nos aproximar do debate acerca da qualidade da
democracia.
A dimensão da
competição
Comecemos pela dimensão da
competição. A democracia como mercado, conforme artigo de Carla
Sales intitulado “As Máscaras da Democracia: Notas sobre a teoria
democrática contemporânea à luz dos eixos dahlsianos” (RSP,
2005). Conforme
a autora, na
perspectiva de J. Schumpeter (“Capitalismo,
socialismo e democracia”, 1942), que era economista, parte-se
do conceito de
que filósofos
do século XVIII atribuíram a democracia, isto é, “a democracia
ou o método democrático seria um arranjo institucional para se
chegar a decisões que visassem o bem comum. O povo decidiria as
questões de seu interesse elegendo seus representantes, que deveriam
reunir-se para realizar a vontade do povo”. Por muito tempo tal
conceito foi aceito como a doutrina clássica da democracia.
Schumpeter vai desenvolver
uma crítica mordaz aos dois pilares da teoria clássica: o bem comum
e a vontade geral. As objeções de Schumpeter partem da premissa de
que não existe algo que seja um bem comum única e perfeitamente
determinado, sobre o qual todos concordam racionalmente. Tampouco
não há nenhuma garantia de
que por mais
racionalmente ideal seja uma decisão, ela coincidirá com a vontade
do povo. Pois
as vontades individuais são muito divididas e provavelmente as
decisões políticas não serão conformes ao que o povo deseja.
Para Schumpeter a democracia
é um método que possibilita o alcance de determinados fins, isto é,
a tomada de decisões políticas, administrativas e legislativas, por
parte dos líderes eleitos pelo povo. Na sua visão a democracia
consiste num instrumento em que indivíduos por meio de eleições
competitivas adquirem os votos para gozarem de poder decisório em
nome dos eleitores.
Em síntese, o modelo
schumpeteriano primeiramente
faz um contraponto a visão clássica de soberania popular. Para ele
a soberania restringe-se ao processo eleitoral, 2º) concebe a
democracia como um meio para atingir determinados fins, 3º) o viés
normativo dá-se em relação ao acordo entre “as regras do jogo”,
para viabilizar o dissenso em relação aos fins, e , 4º) defende “o
governo dos especialistas”, isto é, uma vez eleitos os
representantes a atuação política é tarefa deles, e os eleitores
não devem instruí-los sobre o que fazer (elitismo democrático).
Mais recentemente e nos
marcos da perspectiva schumpeteriana Adam Pzeworski, junto com
Michael
Alvarez, José A. Cheibub e Fernando Limongi, in:
Democracy and Development: Political Institutions and Material Well
Being in the World, 1950-1990
(2000), sustentam
que para
caracterizar um país como democrático o
chefe do executivo deve ser eleito, a legislatura precisa ser eleita,
deve haver mais de um partido e a alternância de poder levará
em conta as regras anteriores.
A Dimensão da
Participação
A partir dos anos 70
intensificaram-se as vertentes participacionistas e deliberativas da
democracia, na medida em que perdem vigor as teorias da soberania
limitada e do elitismo democrático, hegemônicos desde a metade do
século XX.
O
cientista político Luis
Filipe Miguel aponta os elementos essenciais do discurso
deliberacionista: “ A democracia deliberativa exige que as decisões
políticas sejam tomadas por aqueles que estarão submetidos a elas,
por meio do raciocínio livre entre iguais. Participação de todos,
argumentação racional, publicidade, ausência de coerção e
igualdade são os valores que devem balizar as tomadas de decisão em
regimes democráticos. A ausência de qualquer um deles compromete a
legitimidade dos resultados”, em artigo publicado pela Revista
Brasileira de Ciências Sociais, em 2001.
Numa crítica ao minimalismo
schumpeteriano, D. Held (1996) vai salientar que Schumpeter não
considerou a forma na qual os modelos competitivos podem ser
combinados com esquemas participativos, envolvendo reuniões face a
face para estimular e formular a política e as decisões pelo voto
majoritário, eleições de representantes para funções
específicas, etc.
Nos debates envolvendo os
modelos argumentativos, John
Rawls e Jürgen
Habermass foram as grandes referências teóricas. J. Rawls é
considerado
por muitos como um dos principais filósofos políticos
norte-americanos, e é autor de dois livros essenciais para o debate
político contemporâneo. “Uma teoria da Justiça” (1971) é
considerada sua grande obra. Sob novas bases Rawls resgata a teoria
contratualista. Quais novas bases? Enquanto que para os
contratualistas clássicos o pacto fundamentaria a legitimidade do
poder político, para Rawls o problema central era a justiça, mais
precisamente sua concepção política de justiça equivalente
ao princípio da
equidade. O “Liberalismo Político” (1991) é num certo sentido
uma continuidade da obra anterior, além de permitir-lhe desenvolver
a idéia de que o grande problema do liberalismo é em compreender
como sociedades divididas por doutrinas abrangentes e conflitivas
(numa
sociedade pluralista)
podem gerar consensos sobrepostos.
Contudo, é numa passagem de
“Uma teoria da justiça” sobre as decisões da maioria que Rawls
avança na sua concepção de deliberação. Dizia
ele: “nada
garante a idéia de que a vontade da maioria está sempre correta. Na
realidade, as concepções de justiça tradicionais não mantiveram
essa doutrina, ao sustentarem que o desfecho do processo de votação
está sempre sujeito a princípios políticos. Ainda que em
determinadas circunstâncias seja justificado que a maioria detenha o
direito constitucional de legislar, isso não significa que as leis
promulgadas sejam justas” (Rawls,
1971)
Outra forma de encontrar
elementos deliberativos na teoria rawlsiana é sua pressuposição de
que as preferências individuais podem não ser pré-estabelecidas –
como defende Antony Downs – e que portanto há que se reconhecer
“discordâncias razoáveis entre indivíduos razoáveis”. Além
do que tais diferenças cumprem o papel de “balancear os diversos
fins”. No entanto, não encontra-se na teoria de Rawls um
aprofundamento da deliberação argumentativa a partir de fóruns
democráticos, que exercitem a produção de consensos sobrepostos.
Na verdade para Rawls a razão pública não se exercita em fóruns
não estatais.
A discussão sobre o que
poderiam ser os fóruns argumentativos foi levantada por J. Habermass
ao longo de suas obras. Em “A transformação estrutural da esfera
pública”, (1989), Habermass demonstrará preocupação com a
constituição de uma esfera pública de argumentação. No processo
histórico que leva a ascensão política da burguesia, uma nova
forma de relação com o poder é estabelecido. Sobretudo a partir do
princípio da publicidade onde os indivíduos demandam dos
governantes a justificação moral dos seus atos em público. O
fundamental aqui é reter a idéia de que o surgimento de uma esfera
pública de argumentação não estatal confere aos indivíduos um
espaço de interação face a face, em que são debatidos os
conteúdos das decisões políticas tomadas pelas autoridade, e onde
demandas podem ser formuladas para serem encaminhadas ao Estado.
Todavia Habermass
identificará que a esfera pública de argumentação tal qual suas
características originais (séc. XVIII) entrou em decadência no
século XX, pois o que prolifera na sociedade de massas são as
razões não públicas, que colonizaram a esfera pública, e
comprometeram a “opinião pública”.
No início dos anos
80 Habermass
publica sua “Teoria da Ação Comunicativa”(1984). Nesse
empreendimento o autor dá início a um processo de aplicação da
sua concepção de teoria do discurso à política contemporânea.
Ele percebe que o problema da legitimidade na política contemporânea
não está ligado apenas ao problema da expressão da vontade da
maioria no processo de formação da vontade geral (ruptura c
pensamento de Rousseau), mas também estaria ligada a um processo de
deliberação coletiva que contasse com a participação racional de
todos os indivíduos interessados, e/ou
afetados por decisões política.
Esse posicionamento leva
Habermass a formular o assim chamado princípio D: “Só são
válidas aquelas normas-ações com as quais todas as pessoas
possivelmente afetadas possam concordar como participantes de um
discurso racional” (Entre fatos e normas, 1995). Duas
características do referido princípio merecem destaque para a
discussão sobre deliberação; 1ª) não é suficientemente legítimo
dizer à minoria que ela possui menos votos. O que é preciso é
chegar a uma posição racional no debate político que a satisfaça;
2ª) Tampouco o processo de formação de preferências reduzem-se às
eleições. A deliberação democrática depende de uma rede de
processos de barganha regulados de forma justa, e de formas de
argumentação, incluindo discursos pragmáticos, éticos e morais,
cada um deles apoiado em diferentes pressupostos e procedimentos
comunicativos (universais, racionais e tolerantes).
O que Habermass faz é
rejeitar parcialmente ao menos dois princípios da política
contemporânea expressos na vontade geral da maioria e nas
preferências pré-estabelecidas e apuradas em processos eleitorais.
Na verdade Habermass opõe uma terceira concepção baseada na idéia
de deliberação argumentativa. Nessa concepção é atribuída a
esfera pública de argumentação como o locus para uma deliberação
comunicativa, na qual as diferentes concepções morais, e as
diferentes
identidades culturais entrariam em contato, gerando uma rede
procedimentos comunicativos.
Todavia, a questão que se
coloca para a concepção habermasiana de democracia deliberativa é
como se daria a relação entre essa rede de deliberação pública e
os sistemas políticos e administrativos, e, portanto, como pensar a
forma institucional desses arranjos deliberativos (autores como
Arato, Cohen e J. Bohman vão tratar de articular respostas para essa
questão).
Dois autores, Diamond e o
Morlino (in The Quality of democracy, 2004),
propuseram que se pensasse na qualidade da democracia a partir de
oito dimensões, sendo que as cinco primeiras correspondem a regras e
práticas de procedimentos. A idéia dos autores é que a maior ou
menor articulação entre essas dimensões impactem uma maior ou
menor democraticidade de uma determinada democracia contemporânea em
análise;
- Primado da lei (governo das leis);
- A participação dos cidadãos;
- A competição política (eleições limpas e justas);
- Accountability (vertical, social e horizontal);
- As liberdades civis (associação, reunião, expressão, imprensa e o devido processo legal);
- Os direitos políticos (votar, ser votado);
- igualdade política e seus correlatos, a igualdade social e econômica;
- Responsividade governamental (transparência);
Em muitas democracias
contemporâneas – sobretudo dos países beneficiários da 3ª onda
da democratização - o que efetivamente apresenta-se como
deficitário são algumas instituições básicas do Estado moderno.
Posto que podem não ter sido conformadas adequadamente nos estágios
iniciais do processo de redemocratização, e, por conseguinte
estarem operando com base em distorções de seus objetivos
(judicialização da política, por exemplo)!
Num ensaio importante de
Guillermo O`Donnell, “Poliarquias e a (In)efetividade da lei na
América Latina”, de 1998, publicado no livro “O Não Estado de
Direito na América Latina” 2000(org. Mendez-Pinheiro-O’Donnell),
o autor sustenta que na América Latina a desigualdade social torna
deficitário o Estado Democrático de Direito nos seguintes aspectos:
- Falhas na legislação existente (minorias-situação penal-presídios)
- Aplicação discricionária da lei (percepção de justiça)
- Relação autoritária da burocracia com o cidadão comum;
- Difícil acesso ao judiciário;
- Ilegalidade em alguns casos da ação governamental;
Ao
considerar o Estado de Direito um sistema legal - que além dos
direitos políticos e sociais, garante, preserva e estimula a
autonomia e responsabilidade dos cidadãos – na América Latina,
por conta da extrema desigualdade social os cidadãos estão
incapacitados ou desabilitados para exercerem a autonomia. A situação
equivale a uma cidadania truncada. Portanto, O’Donnell caracteriza
que na região ocorre a ausência do componente formal da
democracia(direitos civis), e propõe a criação de uma rede de
accountabilities
sobre os governos (idéia do remédio institucional)!
Contudo,
o debate acerca da qualidade da democracia em nossa região e em
nosso País, não pode dissociar-se da
importância em defendê-la incondicionalmente. Por certo que ao
refletirmos sobre democracia a partir de estudos e de autores
clássicos antevemos os grandes desafios para a sua construção. Por
seu turno a democracia constitui-se no horizonte normativo da Ciência
Política, é indubitável! Espera-se o mesmo dos governos, partidos
e movimentos progressistas
Ilton Freitas
Fevereiro 2015
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___________Poliarquias
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