terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

O “Estado Militarista” Norte-Americano e Suas Razões na Ucrânia


Meu primeiro texto do ano aborda de modo sucinto a crise diplomática e militar entre Ucrânia e Rússia, a partir de uma obra referencial sobre os fundamentos do poder político do governo norte-americano. A meu juízo a leitura atenta do livro, "O Estado Militarista", de 1965, do historiador e jornalista norte-americano, Fred Cook, que inspirou esse artigo, auxilia e muito a compreender em profundidade as tensões políticas e diplomáticas do mundo em que vivemos, do pós-Segunda Guerra (1945) até nossos dias. Avaliem as senhoras e os senhores se há ,ou, não atualidade dessa obra a partir das palavras de Ênio Silveira, diretor da editora Civilização Brasileira, que faz a apresentação do livro, por ocasião de seu lançamento no Brasil, em 1965, ou seja, a quase sessenta (60) anos: "(...) O Estado Militarista, do jornalista e historiador Fred Cook (saibam que não é e nem foi comunista, ó leitores de todos os credos políticos e religiosos!), é a análise objetiva, documentada e chocante da presente estrutura administrativa de seu país. Demonstra-nos como foi possível, à luz de argumentos históricos, técnicos, psicológicos, políticos e econômicos, o acesso do poder militar aos comandos da vida civil, define em termos claros e insofismáveis a aliança militar-industrial e sua motivação básica, que é precisamente a de se manter em permanência um quadro de economia de guerra. (...)"

Boa leitura,  


O “Estado Militarista[1]” Norte-Americano e Suas Razões na Ucrânia


| por Ilton Freitas


Nos estertores da WWII (Segunda Grande Guerra) em 1944/1945, ocorreu um debate crucial entre o gabinete do presidente norte-americano, Franklin D Roosevelt[2], e a área militar de seu governo. Tal evento relatado no livro de Fred Cook, o “Estado Militarista”, de 1965, ajuda a compreender a importância da guerra para os sucessivos governos norte-americanos e o chamado “governo nas sombras”, composto por agências de inteligência, militares e a indústria bélica daquele País. Em termos gerais se debatia no final da WWII, a necessidade de reconverter parte da indústria de guerra para a fabricação de bens de consumo, tendo em vista o atendimento das famílias e do mercado interno. A reação e oposição mais do que relativa dos militares e das empresas contratistas do governo para a fabricação de armas foi brutal! O falecimento de Roosevelt em abril de 1945, dentre outros fatores, resultaram favoravelmente à indústria bélica e seus clientes militares na queda de braço com seus contendores governamentais.

Nos tempos da WWII os gastos com defesa respondiam por mais da metade do orçamento público dos Estados Unidos. Cadeias produtivas da indústria bélica estruturaram o crescimento exponencial de empresas como a Boeing, a GE, a Lockeed, Raytheon, etc. Portanto, a indústria armamentista durante e no pós-guerra se tornou indispensável ao funcionamento da economia estadunidense sendo responsável em alguns estados como a Califórnia, a principal fonte de arrecadação de tributos federais e regionais. À par disso se tornou corriqueiro a prática das “portas giratórias”, isto é, servidores militares das mais altas patentes assumiam posições corporativas muito bem remuneradas no organograma de grandes empresas fornecedoras de equipamentos bélicos. Desse modo o “Estado Militarista” estadunidense avançou qualitativamente e tratou de promover sua influência interna e externa, lançando mão dos mais sofisticados recursos de propaganda e persuasão. Esse foi o papel cumprido pela indústria cultural norte-americana, que tratou de superestimar a participação do exército yanque na derrota dos nazis na WWII, glorificando o seu heroísmo num sem número de filmes, séries e outras peças promocionais hollywoodianas. 



 


Por seu turno, a “Guerra Fria” contra a URSS, termo cunhado em 1947, por Bernard Baruch, assessor do presidente Trumann[3], que governou os EUA de 1945 a 1953, forneceu o leitmotiv para justificar a importância do “Estado Militarista” para combater a “ameaça comunista”. A operação ideológica consistiu em superestimar as intenções beligerantes do estado soviético e demonizar a URSS e seus aliados. Doses de histeria e medo aplicadas sobre o grande público ensejaram o macarthismo[4] nos anos cinquenta, e seu séquito de perseguições, falsas acusações de traição contra supostos aliados e simpatizantes do comunismo naquele País. 

Não foi nenhum representante do “comunismo internacional”, mas em janeiro de 1961, o então presidente norte-americano, ex-general, Dwight Eisenhower, num discurso de despedida transmitido pela televisão alertou sobre o fato de que o aumento contínuo com as despesas em defesa  durante a WWII e com a “Guerra Fria”, resultaram na proeminência do complexo industrial/militar sobre o estado e a sociedade norte-americana. Segundo Eisenhower, tamanha influência consistia numa ameaça aos princípios constitucionais norte-americanos e as suas instituições democráticas. 

A “profecia” de Eisenhower se confirmou dramaticamente. Na política interna no mais do que suspeito assassinato do presidente John Kennedy, em 1963. Kennedy tinha restrições ao aumento do orçamento militar e desagradou os chefes militares e as agências de inteligência governamentais. Na política externa o “Estado Militarista” bancou a “Guerra do Vietnã” (1955 – 1975),  os golpes de estado e as ditaduras militares na América Latina e na África nos anos sessenta e setenta. Armou até os dentes os sionistas israelenses e os regimes mais tirânicos do Oriente Médio como o da Arábia Saudita. A partir dos anos oitenta deram novo impulso à corrida armamentista com o projeto “Guerra nas Estrelas”. No início dos anos noventa e após a desestruturação da URSS, provocaram a primeira guerra contra o Iraque, bombardearam a Iugoslávia sob o manto da OTAN[5] em 1999. Já no início do novo milênio o controvertido “atentado às Torres Gêmeas”, em 11 de setembro de 2001, ensejou a “Guerra ao Terror”. Destruíram o Iraque com o falso argumento de que o regime de Saddam Hussein produzia armas químicas de destruição em massa. Com a guerra ao Iraque combinada com as sanções econômicas que vigiam desde 1991, mais de 700 mil pessoas perderam suas vidas, inclusive muitas crianças em virtude da desnutrição e das doenças por conta do bloqueio econômico que vedou ao governo iraquiano a aquisição de medicamentos e de alimentos no mercado mundial. Os grandes meios de comunicação ocidentais, que nada mais são do que estruturas de propaganda do ”Estado Militarista”, contribuíram para a geração de um ambiente de histeria contra a cultura islâmica. A proclamada “Guerra ao Terror” justificou a invasão e ocupação do Afeganistão em 2002 e em 2011 bombardearam a Líbia através da OTAN, assassinando seu presidente, Mwamar Ghadaffi. Em 2015 incentivaram hostilidades contra o governo da Síria através de terroristas do Estado Islâmico, dentre outros grupos extremistas. Centenas de milhares de refugiados e dezenas de milhares de mortos resultaram em mais uma “Guerra Híbrida” imperial.

O “Estado Militarista” mantém mais de 600 (seiscentas) bases militares em todos os continentes. Mais de 70 (setenta) só na América Latina com as mais diversas justificativas, que vão desde o combate ao narcotráfico[6] até a “consultoria técnica”. O império estadunidense e seu braço armado (Estado Militarista e OTAN) participaram direta e indiretamente de pelo menos 68 (sessenta e oito) conflitos militares[7] após a WWII, que implicaram na interferência em dezenas de nações, promovendo mudanças de governos considerados hostis a seus interesses. Toda essa máquina de guerra imperialista sustenta um milhão de soldados espalhados por centenas de bases militares. Algumas nações ostentam a condição de “países ocupados” militarmente. São os casos da Alemanha, Itália e Japão, onde se situam as maiores bases e armamento nuclear. O custo em vidas humanas dessa parafernália militarista estadunidense pode ser contada aos milhões desde o pós-guerra.

“Estado Militarista” e a Crise na Ucrânia


Em 22 de fevereiro de 2014 foi consumado um golpe de estado na Ucrânia, e o presidente Yanukovitch eleito em 2010, foi deposto. Meses antes, a capital Kiev e a histórica praça Maidan havia sido palco de manifestações importantes contra um já desgastado governo. Ocorreu que as manifestações legítimas contra Yanukovitch, que já havia se comprometido em antecipar as eleições, degenerou em violência crescente. A espiral de confrontos violentos no final de 2013, e no início de 2014, tornou possível que a direção política das manifestações até então populares, caíssem nas mãos dos grupos da ultra-direita ucraniana e de elementos neonazistas. Está mais do que documentado a participação da embaixada norte-americana em Kiev no fomento, estímulo e financiamento dos grupos extremistas, e na interdição de uma saída política e pacífica por meio de novas eleições[8]. O objetivo foi claro. O imperialismo estadunidense optou em promover uma mudança de regime e instalar em Kiev um governo anti-russo para gerar instabilidade na região, que historicamente foi e é considerada área de influência russa. 
   
Por seu turno a crise da perspectiva unipolar do império estadunidense e a emergência do mundo multipolar, cuja “Certidão de Nascimento” foi registrada em Pequim, através da declaração conjunta de Rússia e China no histórico dia 05/02/2022, exasperaram sobremaneira as elites ocidentais e seu braço armado, o “Estado Militarista”. 

Em contraposição a reforma do sistema internacional anunciada pela República Popular da China e pela Federação Russa, o império estadunidense e seu lacaios da União Europeia e da OTAN, tratam de fustigar o confronto entre Ucrânia e Rússia, com o fito de desgastar o governo Putin, no caso dele fazer a legítima opção de defender militarmente seus concidadãos residentes nas repúblicas autônomas de Lugansk e Donetsk. Infelizmente o tom das provocações do exército ucraniano e dos elementos neonazistas que o compõe, forçaram o governo russo a dar início ao processo de evacuação de seus cidadãos para evitar o pior. O cenário recrudesceu e há registros de baixas entre civis na região, por conta de disparos de artilharia e de armamento pesado de parte do exercito ucraniano. A diplomacia russa pressiona para que cessem as hostilidades e que o exército ucraniano recue para suas posições na linha de contato com as repúblicas autônomas, conforme os acordos de 2015. Mas não se pode descartar uma reação tecno-militar do lado russo, conforme já foram advertidas as “autoridades” de Kiev/Ucrania e da OTAN. 

Contudo, o que está claro é que o “Estado Militarista” norte –americano e seus títeres europeus, querem desgastar a Rússia a partir de um conflito armado provocado e falsamente atribuído aos russos. Com isso pretendem favorecer um mix de interesses geopolíticos e geoeconômicos, táticos e estratégicos. Grosso modo poderíamos enumerá-los da seguinte forma:

1. No curto e médio prazo afetar o fornecimento de gás russo para seus clientes europeus, sobretudo a Alemanha, obrigando-os a compra de gás liquozo dos norte-americanos, mais caro, demandando logística complexa e condenado ambientalmente;
2. Do ponto-de-vista geopolítico perfilar a União Europeia com os interesses norte-americanos e afastá-la de Rússia e China. O desvario é inqualificável, pois sonham dementemente com uma mudança de regime na Rússia e a destruição de Putin. A ideia é afastá-la da parceria estratégica com a China para conter e atacá-la oportunamente;
3. Reeditar uma nova “crise dos mísseis”[9] com a Rússia. A filiação da Ucrânia e de seu governo títere à OTAN, tem o potencial para o desencadeamento de uma crise internacional, o que interessa ao complexo industrial/militar e suas demandas por mais fatias do orçamento público;
4. No política interna dos EUA, pretendem com uma guerra desviar a atenção do fracasso da administração Biden em lidar com a insatisfação dos seus eleitores com a economia e com um País fraturado, à beira do irreconciliável com a oposição Trumpista; 
5. O imperialismo estadunidense não nutre nenhuma consideração pela Ucrânia e pelos ucranianos. Insuflam um conflito armado pois precisam de “bucha de canhão” para gerar fortes imagens que comprovem a “agressão russa” junto a opinião pública ocidental.

No momento em que concluímos esse breve e pretensioso texto para fins de avaliação de uma situação deveras complexa, o Presidente Putin, da Federação Russa, informa que reconhecerá a independência das repúblicas autônomas de Lugansk e Donetsk. O desdobramento disso será a assinatura de acordos de cooperação na área de defesa. Se o exército ucraniano insistir na loucura insuflada pelo “Estado Militarista” e continuar atentando contra a vida e as propriedades de cidadãos russos na região do Donbass, a retaliação russa não tardará por certo. 

Contudo, à exceção dos psicopatas do “Estado Militarista”, uma guerra e sua escalada perigosa não interessa a ninguém. Nem a russos, ucranianos, europeus e toda comunidade internacional. Tampouco ao emergente e irrefreável sistema multipolar e seus novos players globais e regionais. Que um novo equilíbrio estratégico se imponha e que os acordos celebrados em Minsk, em 2015, sejam respeitados. Que a diplomacia defendida pela Federação Russa vença às expensas dos “senhores da guerra”.

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[1]O “Estado Militarista”, de Fred Cook , 3a edição, Civilização Brasileira, 1965, inspirou esse breve artigo. Fred Cook foi um notório historiador e jornalista norte-americano, pacifista e apoiador do presidente Kennedy.
  
[2]O presidente Roosevelt governou os EUA por quatro mandatos, de 1933 a 1945. Com o programa de reformas e investimentos públicos, o New Deal, atenuou a crise econômica e o desemprego que se abatera sobre a população norte-americana, após a queda da Bolsa de Valores em 1929.
  
[3]A administração Trumann passou para a história como aquela que autorizou o lançamento de bombas nucleares sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagazaqui, em agostos de 1945. Mais de 300 mil pessoas foram incineradas pelas bombas atômicas.
  
[4]Joseph MacCarty foi um senador republicano de ultra-direita, que no início dos anos 50, em plena Guerra Fria, apresentou uma lista de mais de 200 pessoas “denunciadas”como comunistas infiltrados no governo. A histeria gerou um clima inaudito de perseguições (caça às bruxas) e falsas acusações contra inclusive personalidades do meio artístico.
  
[5]A Organização do Tratado do Atlântico Norte, a OTAN, foi criada em 1949, para ser uma aliança militar defensiva na Europa. No entanto desde 1991, às custas de seu próprio estatuto fundador vem expandindo sua área de atuação no leste europeu, e junto às ex-repúblicas soviéticas, o que gera protestos legítimos das autoridades da Federação Russa.
  
[6]O “Plano Colômbia”, de 1999, que resultou de um acordo bilateral com o governo norte-americano é paradigmático. A presença de bases militares americanas no país não inibiu a produção de drogas, pelo contrário. Relatórios da ONU comprovaram o fracasso do plano no combate ao narcotráfico.
  
[7]https://www.brasildefato.com.br/2019/02/15/o-historico-de-guerras-e-violencia-dos-eua-por-mudancas-forcadas-de-governos
  
[8]O notável diretor de cinema, o norte-americano, Oliver Stone, nos brindou com um extraordinário documentário (Ucrânia em Chamas, 2017) sobre golpe de estado na Ucrânia em 2014, e a participação da embaixada norte-americana no evento. 
  
[9]Em 1962, a administração Kennedy acusou a URSS de que estaria instalando mísseis nucleares em Cuba. Foi um dos episódios mais tensos no período da Guerra Fria (1947-1991). O irônico na atual crise na Ucrânia é que o governo norte-americano cogita em instalar mísseis nucleares na região, caso a Ucrânia se filie a OTAN. 

 

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