terça-feira, 14 de agosto de 2018

“Regime Change[1]” na Nicarágua: Geopolítica, Crise e Instabilidade

| por: Ilton Freitas


A recente onda de violência que se precipitou sobre a Nicarágua nos meses de abril a julho, vitimando mais de trezentas pessoas entre “manifestantes” oposicionistas e militantes/simpatizantes sandinistas, teve o propósito de desestabilizar o governo de Daniel Ortega. Embora as autoridades nicaraguenses tenham anunciado a diminuição dos protestos e da violência, nada garante que os patrocinadores externos da desestabilização do País – que são os mesmos que atentam contra a Venezuela – e os internos, os “quintas-colunas”, não recuperem em breve a iniciativa. 




Marcha de apoiadores do governo sandinista em Manágua em 7 de julho de 2018 (Foto: AFP)



Alguns intelectuais progressistas[2] que criticam duramente a Ortega, cometem o crasso equívoco metodológico de abstrair de suas análises as questões de natureza geopolítica. Chegam a responsabilizá-lo pela onda de violência sem considerar que nas fileiras da dita “oposição democrática”, se encontram bandos armados de mercenários responsáveis por atrocidades do tipo atear fogo e imolar simpatizantes, ou militantes sandinistas. Por conseguinte, é mister reiterar que quando o componente geopolítico é desprezado na análise ela pouco ou nada contribui para a compreensão do que de fato está em jogo. Ademais esse tipo de análise confunde a qualidade da liderança, no caso Ortega, com a força política e social do sandinismo, que se constitui no principal sustentáculo do governo. Se Ortega e dirigentes sandinista se desviaram dos caminhos preconizados pela agenda de combate as oligarquias, ao latifúndio e de resistência as agressões diretas e indiretas do governo norte-americano, é fato grave, sem dúvida. Nesse sentido é preciso confiar na base social do sandinismo e na sua capacidade de pressionar por mudanças de rumos no governo e no alto comando sandinista.

Contudo, insistimos que não se trata de abonar os erros de Ortega e seu governo como, por exemplo, a tentativa de reformar a previdência e o regime de pensões dos nicaraguenses para atender ao “mercado”. Ao ceder às pressões de aliados pouco confiáveis do governo, e historicamente alinhados com os interesses oligárquicos e norte-americanos, o governo de Ortega despregou de sua base social sandinista. Equívocos de outra natureza também foram cometidos por Ortega e seu governo, como o convite por meio de decreto militar a mais de dez países para a realização de manobras militares em seu território, dentre eles EUA e Taiwan[3]. A inócua tentativa de demonstração de neutralidade aos EUA, e a pretendida participação de Taiwan tornaram mais distantes os investimentos chineses em infraestrutura, sobretudo no pretendido canal bi oceânico. Tal iniciativa para além de ineficaz politicamente, constituiu um rotundo fracasso diplomático. Portanto, o governo Ortega merece ser duramente confrontado pela crítica e deve ser pressionado para retomar o curso e as principais diretrizes da revolução sandinista de 1979. Mas isso é muito diferente do que pretender a queda do governo! Acaso Ortega e seu governo seriam substituídos por algum tipo de democracia escandinava, cfe indagação do politólogo argentino Atilio Boron[4]? Foi isso que aconteceu com Honduras com a deposição de Zelaya em 2009? Ou com Lugo no Paraguai em 2011? O governo Dilma foi sucedido por um grupo “virtuoso” de políticos “patriotas”?

 A rigor a Nicarágua desde o século XIX foi alvo da cobiça do “Grande Irmão do Norte”. Todos recordamos dos enunciados do primeiro tratado de política externa estadunidense, a Doutrina Monroe[5], de 1824, asseverando que a América “é para os americanos”! À época os governantes dos EUA consideravam que qualquer intromissão das potências europeias na América Latina, ameaçaria seus interesses e necessidades geoeconômicas. Temiam, sobretudo, uma invasão da França na América Central e a construção de uma saída para o Oceano Pacífico, para fins de acesso ao Oriente e seus mercados. Não por acaso que em 1856, estimularam intervenções na Nicarágua por meio de mercenários armados, e um filibusteiro chamado William Walquer chegou a se proclamar presidente do País. Mais adiante no século XX, de 1912 a 1925, voltaram a ocupar militarmente a Nicarágua. A oposição à ocupação militar estadunidense levou a um grupo de militantes nacionalistas a resistir, e sob a liderança de Sandino -  o general dos “homens e mulheres livres” - e seu exército de camponeses forçaram os Estados Unidos a retirarem suas tropas em 1925. Sandino foi assassinado em 1934, a mando do chefe da Guarda Nacional, Somoza Garcia, que chega ao poder em 1937, através de um golpe de estado com apoio norte-americano. O assassinato de Sandino não sepultou seu ideal de luta anti-colonialista e a favor da soberania das nações e dos povos latino-americanos. Pelo contrário. Seu exemplo e determinação inspiraram ao longo do século XX, a inúmeros movimentos de libertação nacional, de emancipação popular e de luta contra qualquer forma de exploração. Foi dessa vertente politica histórica que nos anos sessenta – também inspirada pela Revolução Cubana de 1959 - foi criada a Frente Sandinista de Libertação Nacional, a FSLN, que agrupou setores da população de diferentes estratos políticos, e combateu com armas em punho a ditadura de Somoza, até seus estertores no ano de 1979. 

A FSLN foi a força política incontestável que dirigiu a luta contra a ditadura somozista. De 1979 em diante, a FSLN governou a Nicarágua por quatro oportunidades, concorrendo e sendo vitoriosa nas eleições gerais de 1984, 2006, 2011 e 2016. Importa reiterar que no último pleito Daniel Ortega foi reeleito democraticamente com mais de 70% dos votos válidos. Sob os dois últimos governos sandinistas a Nicarágua vem apresentando indicadores sociais e econômicos que a colocam em situação vantajosa comparada com os demais países da região. Em relação a segurança de seus cidadãos a taxa de homicídio na Nicarágua nos últimos anos era de seis homicídios por cem mil habitantes. Em Honduras, após o golpe de 2009, a taxa em 2013 foi de mais de oitenta e cinco homicídios por cem mil habitantes e no Brasil de trinta por cem mil. Nesse mesmo ano (2013) a Nicarágua foi considerada o País mais seguro da América Latina, conforme o “Índice de Lei e Ordem” do insuspeito Instituto Gallup. Entre 2014 e 2016 a pobreza diminuiu de 29,6% da população, para 24,9%, segundo cálculos do Banco Mundial. Considere-se ainda que de 2011 a 2017, o PIB do País cresceu a uma média de 4% (quatro por cento) a.a., e seu déficit fiscal não ultrapassou a 2,7% do orçamento. A Nicarágua vem atraindo investimentos externos diretos e incrementando seu comércio. Ademais estimulada por capitais chineses planeja uma portentosa obra de infraestrutura que consiste na abertura de um canal bi oceânico, que rivalizaria com o canal do Panamá, controlado e explorado indiretamente pelos norte-americanos.  

Portanto, a Nicarágua do ponto de vista dos interesses imperiais vem se tornando um “mau exemplo” para a região. O País se tornou alvo da “Guerra Híbrida” que visa uma “regime change”! Foi por isso que multidões de nicaraguenses que apoiam e simpatizam com o sandinismo saíram às ruas. Menos para defenderem Ortega, e mais para defenderem as conquistas sociais e econômicas dos últimos anos de governos sandinistas. Assim como a maior parte da população venezuelana apoia seu governo, o mesmo sucede com o povo nicaraguense. Olham para seu entorno e não querem que seus países mergulhem no fosso de entreguismo e de miséria que as oligarquias latino-americanas reservam a seus povos! Vide no que transformaram o Brasil!


----------------

[1] “Regime Change”, ou “Mudança de Regime” é o eufemismo utilizado pelo Império Anglo-Americano contra estados-alvos que devam ser desestabilizados através de golpes de estado, que removam governos não-alinhados com os interesses das potências ocidentais. N.A.

[2] Vide publicação de Marcos Rolim no Sul 21: https://www.sul21.com.br/colunas/marcos-rolim/2018/07/um-governo-de-assassinos/

[3] Publicação de Andrew Korybko em https://orientalreview.org/2018/07/07/nicaraguas-10-military-training-deal-is-really-a-pro-us-sell-out/

[4] Vide Atilio Boron: http://www.atilioboron.com.ar/2018/07/nicaragua-la-revolucion-y-la-nina-en-el.html

[5] A “Doutrina Monroe” foi enunciada no final de 1823, em mensagem do Presidente James Monroe ao Congresso Norte-Americano. No documento expressava que “a grande ilha americana” já não era mais suscetível de colonização por nenhuma potência europeia. N.A.

Nenhum comentário:

Postar um comentário